Contos largos (Duras-Mitterrand)

António Rego Chaves

Qualquer diálogo entre Marguerite Duras e François Mitterrand poderia ser, «a priori», considerado de leitura obrigatória: os cinco agora publicados, gravados entre 1985 e 1986 e anotados por Mazarine Pingeot, que os órgãos de comunicação social franceses têm desde há muito o hábito de identificar como «a filha natural» do homem que foi seu Presidente da República desde 1981 a 1995, decerto que não. Expliquemo-nos.

Consta a obra, surgida há largos meses em França e editada pela Gallimard por ocasião do décimo aniversário da morte da escritora e do político, dos seguintes temas: «A Estação dos Correios da Rua Dupin», «O Último País antes do Mar», «O Céu e a Terra», «África, África» e «A Nova Angoulême». Comecemos pelo fim.

«A Nova Angoulême» leva-nos ao encontro de uma Marguerite Duras fascinada por Ronald Reagan, decidida apoiante dos bombardeamentos norte-americanos à Líbia de Khadafi, conformada súbdita do imperialismo dos Estados Unidos e irredutível inimiga da União Soviética. Quanto ao seu interlocutor, ouve-a e responde-lhe com a indulgência própria de um político experimentado, mais inclinado a lidar com a crua realidade dos factos do que com os fantasmas da ficção, evita qualquer confronto, lança água na fervura da quase apocalíptica visão do mundo da amiga, conduz habilmente a conversa para a distinção entre segregação racial e segregação social, recorda, «en passant», a existência de 35 milhões de pobres nos EUA.

«África, África» só exige referência devido às frases finais do capítulo. Mútuas banalidades vão salpicando a troca de palavras, até que Mitterrand, porventura já fatigado, sobe a fasquia e mergulha na Cidade dos Mortos do Cairo, cita Philippe Ariès, remata que «somos os vivos da Cidade dos Mortos no dia da ressurreição». Hermético duche de cultura ao dispor de certos chefes de Estado semi-analfabetos…

«O Céu e a Terra» fala de tudo e de nada, mais de nada do que de tudo. Enfim, enche quase duas dezenas de páginas sem qualquer préstimo, numa conversa que começa com Marguerite Duras a queixar-se do reboque de carros mal estacionados e termina com François Mitterrand mostrando-se bem menos anti-soviético e anticomunista do que a sua amiga, ao explicar-lhe como a França deve encarar a «Guerra das Estrelas».

De que trata «O Último País antes do Mar?» Que possa interessar, só, e muito pela rama, do racismo em França, desde a Cruzada contra os Albigenses e da revogação do Édito de Nantes ao processo Dreyfus e ao fenómeno Le Pen. Com este delicioso pormenor para os portugueses, evocado por Duras e tendo como palco o departamento de Yvelines: os nossos imigrantes, lá por 1970, «cozinhavam bacalhau, infestando os prédios» HLM (Habitações de Arrendamento Moderado), «o que provocou a ira dos franceses que lá moravam». Em jeito de comentário um tanto «patrioteiro», seria caso para perguntar se os lusitanos nunca teriam sentido as suas habitações «infestadas» pelo tradicional pivete proveniente dos pés dos seus mimosos vizinhos gauleses…

Chegamos assim ao primeiro capítulo – que dá o título à obra – e cujo conteúdo merece leitura atenta por parte de todos aqueles que se interessam pela biografia dos dois intervenientes. Aqui se encontram os temas «quentes» que ainda hoje poderão provocar a nossa perplexidade ou, mesmo, a nossa indignação. Duras e Mitterrand dialogam acerca de um episódio da Resistência de que foram protagonistas – e que a escritora desenvolveu no seu livro «A Dor». Em síntese, a narrativa parte da detenção de Robert e Marie-Louise Antelme, o marido e a cunhada da romancista, num apartamento situado por cima da Estação dos Correios da Rua Dupin, em Paris, para se deter na longa espera da autora pelo homem que amava, nas vãs tentativas para obter informações concretas acerca do seu destino junto de um pretenso agente da Gestapo e na intervenção pessoal de Mitterrand na libertação do prisioneiro, depois de o futuro estadista se ter deslocado a Dachau, onde aquele se encontrava em estado lastimoso, à beira da morte. Sucede, porém, que o mais polémico conteúdo de «A Dor» nem sequer é aflorado no diálogo: como se ambos ignorassem que, dessa obra, assumida como autobiográfica e considerada por Duras como «uma das coisas mais importantes» da sua vida, tão importante que, perante ela, a literatura a envergonharia, consta uma «confissão» pormenorizada da forma como torturou sem piedade – e até com algum sadismo – um delator na presença dos seus camaradas da Resistência. Contos largos.

Sabendo-se como se sabe que ainda hoje o tema da tortura é especialmente sensível em França, sobretudo quando se evocam alguns episódios da Guerra da Argélia, como o magistralmente denunciado em «La Question», de Henri Alleg, a omissão parece imperdoável. Tanto mais imperdoável quanto Duras, segundo a sua biógrafa Laure Adler, nunca lamentou o facto de ter torturado. Como explicar, então, o ensurdecedor silêncio de alguém que teve a ousadia de escrever, a abrir o capítulo onde narra a sua actividade como torturadora: «Thérèse sou eu. Aquela que tortura o delator sou eu. (…) Dou-vos aquela que tortura com o resto dos textos. Aprendam a ler: são textos sagrados.» A solenidade um tanto retórica desta declaração exigiria uma maior honestidade da autora na conversa com Mitterrand acerca da sua actividade durante a Ocupação. Como, aliás, seria de exigir mais do que o absoluto silêncio do então Presidente da República acerca da sua súbita chegada à Resistência, depois de um sinuoso percurso ideológico e político hoje bem conhecido graças a Pierre Péan, que exaustivamente o descreveu em «Une Jeunesse Française». Mais contos largos.

Assim se perdeu para sempre a oportunidade de confrontar uma escritora dita de esquerda e expulsa do Partido Comunista Francês, sob suspeita de «corrupção política, intelectual e moral», com um estadista dito socialista cujo nome se encontra indelevelmente ligado ao do marechal Pétain e ao regime colaboracionista de Vichy. Ainda uma vez, contos largos.

Marguerite Duras/François Mitterrand, «A Estação dos Correios da Rua Dupin», Casa das Letras, 2006, 165 páginas