O duro dever de resistir (Viana Martins)

António Rego Chaves

No «Anexo ao Anexo» inserido no posfácio à 2.ª edição de «Estados Novos, Estado Novo», já aqui recenseado, escreve Luís Reis Torgal: «Anunciando a publicação de obras específicas e actas de colóquios diversos que surgirão no ano do Centenário da implantação da Primeira República, Maria Fernanda Rollo (…) e Fernando Rosas coordenaram uma obra com quase uma vintena de textos de alguns autores de referência que estudaram a época (outros igualmente importantes não fizeram parte da colectânea), intitulada precisamente ‘História da Primeira República’». Ocupar-nos-emos deste livro, bem como de outros que virão enriquecer a bibliografia acerca do tema; que nos seja hoje permitido recordar o ensaio «Da I República ao Estado Novo», assinado há precisamente trinta e nove anos por António Viana Martins, trabalho que corresponde, no essencial, à tese que apresentou, em francês, na Universidade Livre de Bruxelas.

O estudante universitário que foi Viana Martins viveu e sofreu na pele o salazarismo. Escreve: «Então, o inconformismo pagava-se caro. Ser inconformista era expor-se a uma série de despojamentos: ficar sem trabalho, a perda da profissão; ver interrompidos os estudos quando se é jovem, a perda do futuro; sentir as malhas policiais estreitarem-se, a perda das manhãs tranquilas; a inverosímil e tanto mais brutal prisão ao nascer do dia, a perda da liberdade; o cortejo infinito das humilhações e torturas policiais, a perda da integridade.» (…) «O autor percorreu todos os caminhos do despojamento, salvo o primeiro. Ao conhecer o exílio, descobriu que tinha perdido o passado, para só viver o presente, fazendo o possível por ignorar o futuro. Talvez o último despojamento que conheceu se devesse a este livro: a perda da própria língua materna.»

Considerou Joel Serrão, em 1990, com exemplar clareza, estabelecendo como que os prolegómenos a todas as divagações futuras acerca das origens do republicanismo: «Qualquer que seja, em última instância, o significado mais fundo da vitória da insurreição lisboeta de 1910, a verdade é que tal acontecimento é a emergência à superfície do fluxo histórico português de virtualidades que remontavam, porventura, a 1820, quando, pela primeira vez entre nós, foi posta em causa a legitimidade e a perenidade da estrutura do Antigo Regime cujas traves-mestras eram o predomínio socioeconómico da nobreza, o ordenamento ideológico e cultural da Santa Madre Igreja e o absolutismo político, simbolizado na omnipotência régia.» (…) «Se, em Portugal, o republicanismo, ao fim e ao cabo, se considerava – e legitimamente o era –, herdeiro do vintismo de esquerda (1820-1822), do setembrismo (1836-1838), da Patuleia (1847), do ‘socialismo’ de Henriques Nogueira (1851) e de outros, não há aí anomalia alguma, mas tão-só uma dada forma de assunção do radicalismo liberal ou, se se preferir, do democratismo liberal, parte inseparável disso que foi o liberalismo em sua totalidade, envolvência e devir.»

Decerto que Viana Martins subscreveria estas afirmações, pois já no seu ensaio de 1970 afirmara: «No que diz respeito a Portugal, foi, não a revolução republicana, mas a revolução liberal (1820-1834) que libertou a agricultura da organização feudal, aceitando a livre concorrência, criou instituições políticas parlamentares e consagrou a supremacia económica e política da burguesia. Sem dúvida, a Igreja conservará ainda privilégios e a nobreza permanecerá como classe proprietária, possuindo um estatuto social superior ao da burguesia; esta predomina, contudo, no domínio económico, como no terreno político.» (…) «Só o Partido Republicano trazia uma alternativa válida de governo; não apenas era o melhor garante da ordem burguesa nascida no período revolucionário de 1820-1834, mas também o último recurso numa situação sem perspectiva. Por conseguinte, é-se autorizado a dizer que os acontecimentos de Outubro de 1910, se não constituem a revolução burguesa em Portugal, representam contudo o seu último estádio, isto é, a consagração definitiva das suas conquistas.»

Neste contexto, como seria previsível, «a ordem republicana não consegue libertar-se do peso do passado». Um homem parece aperceber-se como ninguém dos limites impostos ao exercício do poder: Afonso Costa. Por isso renunciará a tocar nas estruturas económicas herdadas da monarquia e «tentará imprimir à república um carácter revolucionário no plano político e religioso». Daí, entre finais de 1910 e inícios de 1912, além de uma mitigada consagração do direito à greve, a dissolução da Companhia de Jesus, de todas as congregações e o confisco dos seus bens, a supressão do ensino religioso, a permissão do divórcio, a lei da separação da Igreja e do Estado, o registo civil. Conclui Viana Martins: «É ao governo de transição formado em 5 de Outubro que cabe o essencial da obra republicana: ‘não de pode dizer – escreve [Artur Ribeiro Lopes] quem mostra todo o horror que inspira o novo regime – que a ditadura do governo provisório tenha sido estéril. Reformas das finanças, da instrução pública, uma nova organização do crédito agrícola e a criação do ensino técnico foram pelo menos tentativas fecundas.’ Decerto, nisso não se pode ver mais do que a realização de tarefas normais num Estado moderno. Desde então, porém, a república contentar-se-á em sobreviver.»

Socorrendo-se com frequência dos jornais nacionais e estrangeiros ao seu alcance na Bélgica, nomeadamente o «A.B.C.» e a «Seara Nova», bem como os diários «L’Indépendance Belge», «La Libre Belgique» e «Le Peuple», Viana Martins logra, por vezes, alcançar o aparentemente inalcançável: conferir ao seu livro a dimensão de um colorido testemunho presencial dos acontecimentos vividos pelos portugueses no período que decorreu entre a implantação da República e a formação do Estado Novo. Esse não será o menor dos méritos deste cidadão forçado ao exílio que, ao fazer justiça à República, cumpria o duro dever de resistir ao salazarismo.

António Viana Martins, «Da I República ao Estado Novo», Iniciativas Editoriais, 1976, 207 páginas