A cruz e a espada da Igreja Romana (Charles Boxer)

António Rego Chaves

O britânico Charles Boxer (1904-2000) é considerado um dos mais importantes historiadores da expansão marítima europeia. Professor de estudos portugueses no King’s College de Londres, publicou numerosos livros sobre o tema, nomeadamente «Relações Raciais no Império Colonial Português», «A Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica» e «O Império Marítimo Português». A obra de que hoje damos notícia, pela sua rigorosa investigação, argúcia e sobriedade, constitui, talvez, uma das mais esclarecedoras acerca do papel desempenhado pela Igreja Católica na expansão de portugueses e castelhanos «desde a China até o Peru». Em capítulos consagrados às questões raciais, às interacções culturais e aos problemas de organização (relações entre o clero regular e o secular, a missão como instituição de fronteira, o patrocínio das Coroas ibéricas à Igreja Ultramarina, a Inquisição), o autor oferece-nos uma notável síntese de alguns dos temas fulcrais das colonizações levadas a cabo durante mais de três centenas de anos pelos dois impérios gerados na Península Ibérica.

«Durante séculos» – sublinha Charles Boxer – «o preconceito racial e a escravidão negra foram inseparáveis, pelo menos para a grande maioria dos europeus ocidentais. A Igreja proclamava, por um lado, que todos os fiéis eram irmãos, mas, por outro, implicitamente ou explicitamente, sancionava a barreira racial baseada na cor da pele e a escravidão.» (…) «Em várias regiões e durante longo tempo, a formação de um clero autóctone responsável esbarrou na oposição dos próprios missionários que deviam incentivá-la, observação que, por sinal, se aplica tanto aos protestantes quanto aos católicos. Qualquer que fosse a teoria, na prática, o clero nativo negro foi mantido numa posição de estrita subordinação aos sacerdotes brancos europeus, principalmente nas regiões onde estes últimos pertenciam a ordens religiosas – ou seja, ao clero regular em oposição ao secular.» Aliás, de uma maneira geral, também o clero goês ou canarim foram relegados para um papel estritamente subordinado, devido, sobretudo, a preconceitos raciais, até aos últimos anos da governação pombalina. Quanto aos ameríndios, mestiços e filipinos, só em 1769 Castela ordenou a todos os prelados da América espanhola e das Filipinas que admitissem um número significativo de aspirantes ao sacerdócio. Japoneses, chineses, siameses e cambojanos foram também vítimas de discriminação, enquanto os padres vietnamitas – que chegaram a acumular as suas funções com as de «médicos descalços» – seriam relativamente acarinhados.

A Igreja definiu-se, segundo acentua Charles Boxer, como «uma grande instituição escravocrata nos impérios coloniais ibéricos». Na verdade, eram utilizados negros «nas plantações de açúcar dos jesuítas na América espanhola e portuguesa, assim como em seu serviço doméstico nessas regiões e nas Filipinas, além das colónias portuguesas da Ásia e da África. Ademais, quando a Igreja se dispôs, tardiamente, a condenar a escravização de raças ‘civilizadas’, como japoneses e chineses, jamais estendeu, de forma implícita ou explícita, essa reprovação aos negros africanos.» Houve, como é sabido, casos como os dos clérigos Bartolomé de Las Casas, Alondoso de Montufar ou Fernando Oliveira, que ousaram condenar a escravatura e o tráfico de escravos: mas foram alertas excepcionais, muito isolados e, na prática, inconsequentes.

Quanto às interacções culturais, predominou o arrogante eurocentrismo evidenciado pelos «conquistadores espirituais» no seu relacionamento com os «pagãos ignaros». Diziam ensinar «a única religião verdadeira». Dignavam-se, em contrapartida, por dever e eficácia do ofício, estudar algumas das línguas dos «indígenas» que iam brutalmente convertendo ao catolicismo. Apreciavam quase sempre com ignorante sobranceria todas as ideias, todos os costumes e todas as crenças que não entendiam. Permitiam-se, mesmo, classificar «ex cathedra» as culturas asiáticas como as mais evoluídas, ainda que muito inferiores à nossa; colocavam em segundo lugar, «ex aequo», astecas, incas e maias; finalmente, encontraram a desprezível designação de «selvagens» para agrupar num mesmo compartimento dos seus privilegiados cérebros de bestiais colonizadores os negros africanos, os índios caraíbas e os tupis. Maravilha das maravilhas, apesar de os ibéricos respeitarem hoje um pouco mais o hinduísmo, o budismo ou o islamismo, ainda podemos encontrar, um pouco por todo o lado, «patriotas» orgulhosos destas duvidosas «epopeias» em que os jesuítas, no dizer do autor, «se viam a si mesmo em relação às demais ordens [religiosas] como um sargento instrutor do corpo de fuzileiros navais norte-americano olha para o Exército dos Estados Unidos». A realidade era, aliás, mais complexa em algumas paragens, como já em 1638 fizera notar o franciscano Paulo de Trindade: «As duas espadas do poder civil e do poder eclesiástico estiveram sempre tão unidas na conquista do Oriente que raramente encontramos uma sem a outra. O facto é que as armas só conquistavam por intermédio do direito que o Evangelho lhes conferia, e a pregação só era útil quando acompanhada e protegida pela força das armas.» Sedimentou-se, pois, a íntima cumplicidade entre a cruz e a coroa, o altar e o trono, a religião e o império.

Pergunta Charles Boxer: «Os missionários conseguiram realizar tudo o que se propunham? Se não, por quais motivos? Até que ponto foram obrigados a transigir com as crenças e ritos indígenas?» Analisa então a grande quantidade e a duvidosa qualidade das conversões realizadas pela Igreja militante, a persistência da idolatria e a «invenção» de um quase irreconhecível cristianismo de carácter sincrético nos países «descobertos», fluxos e refluxos do entusiasmo missionário. Conclui que, ao contrário do que se passou na América Latina, na África e na Ásia o catolicismo romano, com a única excepção das Filipinas, não logrou aliciar senão minorias quase insignificantes. Terá valido a pena? E se sim, se valeu mesmo a pena, para quem terá valido a pena?

Charles R. Boxer, «A Igreja Militante e a Expansão Ibérica – 1440-1470», Companhia Das Letras, 2007, 183 páginas