Um adeus a Maio de 68 (Virginie Linhart)

António Rego Chaves

Ouvi há poucas semanas na televisão uma socióloga portuguesa referir o Maio de 68 como algo quase sem importância, a não ser porque teria trazido mais liberdade sexual às mulheres. Pasmei. A senhora disse estar naquela época em Londres – não em Paris, tão-pouco por cá. Como podia ser tão peremptória e «arrumar» assim um movimento que mobilizou os estudantes de toda a França, conduziu a uma greve geral de milhões de trabalhadores e a importantíssimas conquistas sociais, levou o general De Gaulle à Alemanha, em busca de auxílio militar, para obstar a uma tentativa revolucionária?

Edgar Morin fez o mês passado, numa entrevista ao «El País», uma observação curiosa acerca das consequências do fenómeno «Maio de 68». Dizia o eminente sociólogo: «A juventude passa de fases estudiosas, aparentemente despolitizadas, nas quais se diria que cada um se ocupa exclusivamente de si próprio, dos seus estudos, para despertar subitamente com uma explosão, amiúde provocada por um projecto de reformas, de facto, de minirreformas secundárias e estúpidas, que serve de detonador a uma revolta estudantil.» O importante está em que cada um dos episódios que se seguem à «explosão» determina que os jovens se politizem, «entrem na polis, na sociedade política, no jogo da coisa pública. Um processo muito saudável para a sociedade francesa». Quanto ao controverso Bernard-Henri Lévy, escreveu, há mais de um ano, no jornal «Le Monde», que em Maio de 68 se sentia, «quase fisicamente, o degelo das inteligências e das almas, essa poesia, essa liberdade, que foram a marca do momento e que, hoje, cruelmente, nos fazem falta». Eis o que muitos sentiram – e ainda sentem.

Virginie Linhart, realizadora cinematográfica de documentários, nasceu em 66. Filha de Robert Linhart, maoísta, fundador do movimento pró-chinês em França, figura de destaque do Maio de 68, escreve sobre o dia em que seu pai se calou. Não nos fala apenas de uma experiência pessoal, mas do destino dos filhos daqueles que dirigiram ou participaram activamente no movimento estudantil nascido em Nanterre. E diz-nos: «Meu pai foi uma das figuras mais marcantes dos anos 1968. Infelizmente, é também uma das figuras mais marcadas. No caminho para encontrar os antigos companheiros de meu pai, descobri os seus filhos. Através das suas recordações, foi a minha própria infância que ressurgiu: nem todo o mundo teve a sorte de ter pais revolucionários…»

A pergunta fundamental que percorre a obra é a seguinte: «Por que motivo se tentou suicidar e se calou, dir-se-ia que de uma vez para sempre, o pai de Virginie Linhart?» A resposta é pungente. Num livro onde surgem a todo o momento os «fantasmas» dos ideais políticos de Louis Althusser, Alain Geismar ou Alain Krivine, para só referir três dos mais conhecidos nomes do Maio de 68, algo não pode ser ignorado – a vanidade de grande parte dos seus esforços para fazerem do Hexágono um país muito diferente do que era no momento em que os estudantes saíram pela primeira vez para as ruas e enfrentaram, à pedrada, a polícia de choque. Nessa altura, Robert Linhart talvez tenha tido a certeza de que era possível mudar a França, senão o mundo inteiro.

Treze anos depois, vencida já uma profunda depressão, tinha decerto perdido todas as ilusões que o seu mestre Louis Althusser ajudara a acalentar: não, afinal jamais lhe seria proporcionado, a si e aos seus companheiros, inflectir o curso da História. Havia que integrar-se na sociedade que detestava, com toda as suas (pequenas) grandezas e (grandes) misérias. Curiosamente, é em 1981, nas vésperas da eleição do «socialista» François Mitterrand, que tenta o suicídio. Não seria já evidente para si que o sucessor de Giscard d’Estaing não podia dar origem a uma nova ordem social e que apenas lhe seria dado «remendar», aqui e ali, com mil cuidados, para não despertar as represálias dos poderes económicos, a «velha França»? O suicídio falha, Robert entra em coma.

Sai do coma um homem muito diferente do que agira, lutara e tanto discursara desde Maio de 68. É agora um «velho» de trinta e seis anos que escolheu não mais falar, que optou por um definitivo silêncio. Passara a saber que, ao contrário do que acreditara, ser realista não era pedir o impossível. Virginie virá a descobrir que seu pai fora para ele próprio o melhor médico imaginável. «Apenas ele tinha tido essa inteligência de compreender que, na plena posse dos seus meios psíquicos e intelectuais, deixava de se controlar. Portanto, era necessário, a todo o custo, reduzir esses meios. Daí o mutismo, o fechar-se em si mesmo, a solidão.» Conseguiu assim passar quase vinte e cinco anos em silêncio, sem médicos, sem medicamentos, sem clínicas. «Meu pai não era essa vítima que durante muito tempo eu tinha imaginado, era um homem que sabia exactamente como se proteger dos seus demónios, e tudo havia feito nesse sentido.»

E a autora põe termo ao mistério: «Sei o que se esconde por detrás [do silêncio de Robert Linhart]. Sei que tudo isso é uma encenação, para sua e nossa tranquilidade. Eis a razão pela qual meu pai se calou. Não existe nenhuma comparação possível com aqueles que continuaram a falar, a estar presentes, a expor-se politicamente, mediaticamente, literariamente. Esses não enfrentaram os mesmos problemas. Cada um seguiu o seu caminho. Meu pai teve de encontrar uma orientação para não partilhar a sua vida entre as luzes da ribalta e a clínica psiquiátrica. Na sua doença, deu provas de uma grande sageza. No seu isolamento, dominou com perfeição o seu destino.» (…) «Já sei o que significa o silêncio de meu pai. Não creio que isso me faça sofrer menos, mas tomo-o por aquilo que é: uma condição ‘sine qua non’ do seu equilíbrio, decerto frágil, mas que funciona na medida em que ele conserva o seu total controlo. Meço de hoje em diante as vantagens do seu silêncio. Por muito incongruente que isso possa parecer, sou obrigada a reconhecer que elas são, apesar de tudo, muito reais. Agora, sei por que motivo meu pai decidiu calar-se. Então, silêncio.»

Virginie Linhart, «Le jour où mon père s’est tu», Seuil, 2008, 177 páginas