Philipp Blom («Gente peligrosa»)

Radicalismo e tolerância

António Rego Chaves

A tese defendida pelo austríaco Philipp Blom neste bem documentado volume surpreenderá muitos dos seus leitores: Voltaire e Rousseau não foram «perigosos»; muito pelo contrário, as suas ideias de algum modo eram assimiláveis pela mentalidade dominante na época em que viveram. «Perigosos», sim, eram o barão Paul Thiry d’Holbach e Denis Diderot.

Ao longo de quatro centenas de páginas, o historiador esforça-se por proceder à demonstração cabal das suas conclusões no que se refere a Voltaire e a Rousseau (afinal mais vinculados a concepções cristãs do indivíduo e da sociedade), e no que respeita a d’Holbach e Diderot (esses, sim, «perigosos» ateístas militantes). A verdade é que o grande responsável pela «Enciclopédia» passou meses encarcerado devido às suas ideias e que alguns dos seus textos constituíam uma crítica mordaz da vida pública, que dizia subjugada pela tirania religiosa e política. Não por acaso, Georges Politzer considerou-o «o maior pensador materialista» antes de Karl Marx.

Quanto ao barão d’Holbach, os títulos anticlericais de que foi autor bastam para compreender as razões pelas quais se tornou «insuportável» para os poderes constituídos, nomeadamente a Igreja Católica: «O bom senso ou as ideias naturais em oposição às ideias sobrenaturais», «Da crueldade religiosa», «Os padres desmascarados ou das iniquidades do clero cristão», etc. Fazendo seus os cultos da Natureza, da Ciência e da Razão, professando um assumido e intransigente ateísmo e recebendo no seu salão parisiense dezenas de individualidades francesas e estrangeiras que alinhavam por idênticas opções, este «inimigo» do teísmo e do deísmo foi, sem dúvida, um dos mais convictos e dogmáticos ateus do seu tempo.

Entre os dogmatismos católico, calvinista ou anglicano e o dogmatismo ateu, o célebre filósofo deísta escocês David Hume surge-nos hoje como uma ilha, um exemplar caso de moderação, equilíbrio e sensatez. Também ele frequentador assíduo do salão de d’Holbach, enquanto exerceu funções diplomáticas em Paris, ignorava a suficiência dos crentes incondicionais e a arrogância dos ateus impermeáveis à dúvida. Movendo-se com agilidade entre ideias, factos e crenças, lograria apresentar aos seus contemporâneos uma visão do homem e do mundo que ainda hoje pode ser encarada como das mais notáveis filosofias desde sempre nascidas no Velho Continente.

Longe do radicalismo do barão d’Holbach (Diderot debateu-se sempre entre razão ateia e sensibilidade religiosa, sublinhe-se) Hume, no entanto, em alguma medida viria a pôr termo a séculos de especulação metafísica. Tomando como ponto de partida o método experimental, concluiria que nada poderia saber acerca de Deus. Pondo de parte, pois, todas as certezas, renunciava a qualquer espécie de verdade absoluta. Escreve Philipp Blom:

«Como viver em semelhante vazio? É impossível, responderam Rousseau e Voltaire quase em uníssono; necessitamos da verdade absoluta mesmo que tenhamos de inventá-la. Mas Hume pensava de outra maneira. A fim de criar a sua própria classe de significado, uma possibilidade de dar forma a uma vida que merecesse ser vivida, voltou-se para a filosofia da Antiguidade greco-romana, mas não escolheu como fonte de inspiração a tradição dominante aristotélico-platónica, mas os estoicos, que já tinham procurado maneiras de enfrentar a vida com dignidade e sem procurar mentiras edificantes. Segundo Hume, do que se necessitava era de uma ‘virtude firme e masculina que nos preserve dos desastrosos acidentes da melancolia ou nos ensine a suportá-los. Enquanto dura essa serena luz do sol do espírito nunca aparecem os espectros da falsa divindade.’»

Comenta o autor: «O ateísmo de Hume era sólido, mas, em última análise (e de acordo com as suas convicções filosóficas) tão pragmático que ele preferia considerar-se agnóstico. Se não há prova definitiva de que algo existe à margem das impressões sensoriais, então também é impossível demonstrar que algo não existe. Em consequência, é impossível provar ou negar a existência de Deus. Daí que, para dizer que alguém é ateu, só contemos com a mesma certeza que nos permite dizer que o sol nascerá amanhã; é um atalho intelectual, um hábito de pensamento. Para o verdadeiro filósofo, o agnosticismo é a única posição razoável.»

O cerne da questão talvez residisse em que a postura antimetafísica adoptada por d’Holbach se limitava a substituir a crença na religião pela fé na ciência. O barão, tal como a Igreja de Roma, acreditava numa verdade única, mas David Hume conduzia o cepticismo epistemológico muito além do radicalismo do seu anfitrião ateu. O choque entre ambos produziu-se, apesar do respeito que os ligava: a palavra «certeza» não tinha cabimento na filosofia do escocês. Como adianta Blom, «destruir todas as bases racionais da crença religiosa era infinitamente mais importante do que a questão de saber se existia ou não uma realidade possível fora dos nossos sentidos, uma realidade sobre a qual não podia confirmar-se facto algum.»

Entre a intolerância de matiz cristão e a intolerância do «ateísmo científico», David Hume parece ter anunciado tempos novos, em que o dogmatismo pudesse ser excluído da linguagem filosófica. Poucos no século XVIII como o autor do «Tratado da Natureza Humana» terão contribuído para banir as verdades absolutas do debate de ideias, evitando uma crispação que não poderia contribuir para a tematização serena e o esclarecimento dos problemas teológicos discutidos desde a Idade Média.

Sustentando nada se poder demonstrar acerca da imortalidade da alma ou da existência de Deus, pela positiva ou pela negativa, Hume repudiou tanto o espiritualismo como o materialismo racionalista e escolheu um único «inimigo», o dogmatismo, toda e qualquer espécie de dogmatismo. Nessa medida, o seu imenso esforço só poderia vir a desembocar em tolerância.

Philipp Blom, «Gente peligrosa – El radicalismo olvidado de la Ilustración europea», Anagrama, 2012, 468 páginas