Georges Minois («As Origens do Mal»)

O «pecado» de Adão e Eva

António Rego Chaves

Dizem teólogos cristãos que o pecado «está associado a uma pretensão de decidir de modo completamente auto-suficiente o que está bem e o que está mal», isto é, não pode ser separado do efectivo exercício da liberdade do homem perante Deus. Adão e Eva desobedeceram a Deus, comendo do fruto da árvore «do conhecimento do bem e do mal» – ou da felicidade e da infelicidade, a alternativa depende dos tradutores da Bíblia. São Paulo garantirá que, «pela desobediência de um só homem, todos os homens se tornaram pecadores» e que, por isso, «a morte atingiu todos os homens». Santo Agostinho e o Concílio de Trento irão mais longe: o pecado original, presente em todos nós desde o nascimento, apenas pode ser anulado pela graça de Cristo concedida pelo baptismo. Entre Adão (símbolo de liberdade e autonomia) e Cristo (sinal de submissão e heteronomia), o homem seria chamado a escolher o seu destino – seja como assumido criador, seja como passivo receptáculo dos valores morais.

Georges Minois traça a história das concepções do pecado original desde o seu registo na Bíblia até aos nossos dias. Tarefa meritória, mas votada a deixar-nos a braços com mais complexas perguntas do que tranquilizadoras respostas. Acentuando que o Antigo Testamento e os Evangelhos nunca se pronunciaram sobre o pecado original, e que foi «São Paulo e, sobretudo, Santo Agostinho – o primeiro a utilizar a expressão –, que dele fizeram a base do cristianismo, o facto primordial de onde decorre a salvação», como evitar o famoso dilema com que nos confrontamos quando queremos explicar a presença do mal num mundo gerado pela suprema vontade do Criador, mas onde a morte é a única certeza: «se Deus é todo-poderoso, não é infinitamente bom; se é infinitamente bom, não é todo-poderoso»? Mesmo Santo Agostinho perguntará: «Se o primeiro homem foi criado sábio, por que foi seduzido? E se foi criado insensato, por que não é Deus o autor dos vícios?»

Jesus acabará, assim, por nos surgir como «o novo Adão», com base nas passagens da Epístola aos Romanos (5,12-21) em que Paulo estabelece um paralelismo entre o «primeiro homem» (responsável pela «queda») e o «filho de Deus» («salvador universal»). O pecado original transforma-se numa necessidade lógica para o cristianismo. «A partir do momento em que se admite a Encarnação e a Redenção, a morte voluntária do filho de Deus, esta deve ser esclarecida. Apesar dos esforços de certos teólogos actuais, parece impossível justificar a crucificação sem a queda» – faz notar o autor. «O Cristo veio à Terra como um segundo Adão, para reparar o pecado do primeiro – o que, por antítese, confere uma estrutura colossal a Adão».

A primeira consequência do pecado original é que todos os homens serão mortais e maus, ao passo que, antes da desobediência a Deus, Adão era imortal e bom (aliás, a grande culpada da queda teria sido Eva, ao incitar Adão a provar o fruto proibido). Mais: para contestar as desigualdades e as injustiças, tornar-se-á necessário pôr em causa a maldição que pesa sobre toda a Humanidade desde que Adão comeu a maçã. «A melhor justificação da monarquia absoluta é o pecado de Adão. Teólogos e filósofos vão pôr-se de acordo para o demonstrar. A monarquia de direito divino precisa de uma humanidade pecadora para justificar o seu papel providencial».

A negação intransigente do pecado original terá no século XVIII truculentos representantes. Voltaire dirá, com todas as letras, que a doutrina de Santo Agostinho «é digna da cabeça fervente e romanesca de um africano debochado e arrependido, maniqueu e cristão, indulgente e perseguidor, que levou a vida a contradizer-se». Diderot não será menos peremptório: «A natureza não nos fez maus, é a má educação, o mau exemplo, a má legislação que nos corrompe.» O Iluminismo insiste na ideia de progresso, sustenta que é possível melhorar a organização social do mundo civilizado, educar os indivíduos para a liberdade, a igualdade, a democracia. No século XIX, porém, mal digerida a Revolução Francesa, ainda emergirão passadistas a gemer que «só a aliança entre o trono e o altar pode compensar os efeitos do pecado de Adão, pelo menos no plano da organização social».

Charles Darwin, entre 1859 e 1871, faz explodir as suas demolidoras «bombas de fragmentação»: ele não contesta que a Terra seja o centro do mundo, como fez Copérnico, ou que a razão seja o núcleo da existência humana, como fará Freud, mas desfere o que poderá ser o golpe de misericórdia na doutrina da criação. As suas obras sobre a origem das espécies e a ascendência do homem reduzem a evolução à história natural, surgindo a consciência moral como um resultado da interiorização da necessidade de entreajuda na luta pela sobrevivência. Os defensores do mito de Adão não desarmam e cingem-se obstinadamente à interpretação literal e histórica da Bíblia, transformando-o em símbolo da luta da fé contra a ciência. Tendo como pano de fundo a exigência de vida eterna, atacam estudiosos da pré-história, geólogos, etnólogos, paleontólogos, biologistas. «Adão, o pecado original, a moral: os três termos encaixam-se e o naufrágio de um acarretaria o afogamento dos outros dois.»

Já na segunda metade do século XX, o cardeal Jean Daniélou mostra-se inflexível ao refutar a fascinante heterodoxia do grande solitário e cientista-místico Teilhard de Chardin: «Minimizar a realidade do pecado original na sua origem histórica, nas suas consequências para a condição humana, é, ao mesmo tempo, destruir o significado da morte e da ressurreição de Cristo.» Dir-se-ia que, sendo o pecado original a pedra angular do cristianismo, sem ele não haveria motivo para a existência de Cristo Salvador. Não ficará sem resposta. Um dos mais lúcidos teólogos do nosso tempo, Eugen Drewermann, escreverá – ao arrepio dos «infalíveis» magistérios de Pio XII, Paulo VI ou João Paulo II –, que «o dogma do pecado original não é mais do que a impossibilidade para o homem de ser bom enquanto permanecer separado de Deus».

Deixemos Georges Minois concluir: «A história do pecado original é, na verdade, a história do modo como a cultura ocidental, ao interpretar e utilizar o mito de Adão e Eva, procurou construir a imagem que se fazia do homem. Quer essa interpretação seja literal, simbólica ou alegórica, ela regressa sempre a esta intuição básica: o homem é um ser que não suporta estar limitado. Essa é a sua verdadeira natureza, o seu vício ontológico, o seu pecado original. O erro não terá consistido em criá-lo?»

Georges Minois, «As Origens do Mal», Editorial Teorema, 2004, 484 páginas