Eric Hobsbawm («Reflexões sobre o Futuro»)

A «tentação do vidente»

António Rego Chaves

Perguntar a um historiador o que é o presente e o que será o futuro poderá não ser um contra-senso. De facto, Eric Hobsbawm (nascido em 1917) não é apenas o reputado especialista da «era das revoluções», «do capital» ou «do império»: estudou como poucos o século XX («a era dos extremos») e pode ajudar-nos a entender os tempos de hoje e parte do que se seguirá. A sua argúcia e o seu conhecimento da cena internacional assim o indiciam.

Sem querer «cair na tentação do vidente», diz-nos: «Todos nós prevemos ou tentamos prever o futuro. Faz parte da vida e dos negócios tentar perceber o caminho que o futuro vai percorrer, enquanto nos for possível. Mas o processo de previsão do futuro deve necessariamente apoiar-se no conhecimento do passado. O que irá acontecer tem de estar ligado ao que já aconteceu, e é neste ponto que o historiador entra em cena.»

Desta perspectiva, Hobsbawm analisa com ímpar clareza um fenómeno cada vez mais comum, porventura ainda mais vulgar num futuro próximo, a «precariedade do emprego»: «A insegurança no trabalho é uma nova estratégia para aumentar os lucros, libertando-se na medida do possível do trabalho humano, ou pagando-o menos. Na economia capitalista moderna são precisamente os seres humanos o único factor cuja produtividade não pode ser facilmente incrementada e em que os custos não podem ser facilmente reduzidos. Daí que a pressão para os eliminar da produção seja enorme.» O «ideal» inconfessado das empresas seria, portanto, prescindir, se possível, de todos os seus empregados. «Utopia» risível se, de facto, não correspondesse a algo comprovável: «Esta é uma lógica férrea específica da produção capitalista em si, mais do que da competição global.»

As expectativas do autor de «A Era dos Extremos» não são optimistas no que se refere à possibilidade de uma futura distribuição equitativa dos bens produzidos no Planeta: «Quanto mais o mundo enriquece, mais a igualdade, mesmo a igualdade política e jurídica, está destinada a diminuir. Os sistemas mais igualitários da História, regimes socialistas como a Rússia e a China de Mao, baseavam-se no facto de que, sendo países pobres, não funcionavam os mecanismos que criam uma classe de ricos. Claro, também na União Soviética uma minoria, e na China uma minoria ainda mais pequena, estava muito melhor do que a população em geral. No entanto, se os compararmos com o Ocidente, estes níveis de riqueza eram ridículos. A ‘dacha’ de Estaline ou da nomenclatura soviética eram um ‘status symbol’, mas qualquer profissional relativamente próspero de Milão tem uma segunda casa muito mais bonita no Lago de Como.»

Falando da União Europeia, já afirmava Eric Hobsbawm, ainda corria o ano de 1999: «Mais cedo ou mais tarde, também na Europa nos veremos na situação do Conselho de Segurança da ONU, onde os países que realmente são capazes de tomar decisões simplesmente não querem ceder o seu poder às maiorias. O direito de veto das grandes potências no Conselho de Segurança foi inventado precisamente por isso, para ter a certeza de que nenhum dos Grandes iria ser vencido sobre questões realmente importantes.» (…) «Uma maioria composta pela Eslovénia, Estónia, Letónia e outros Estados deste género nunca poderia ser considerada, pela França ou pela Alemanha, nem pela Inglaterra ou pela Itália, como uma maioria adequada a cujas decisões nos devemos conformar.» (…) «A União Europeia não foi fundada como uma organização democrática. Para mim nem faz sentido falar do seu défice democrático, porque nem sequer se presumia que viesse a ser uma democracia. E, se fosse realmente uma democracia, nunca teria alcançado o estado actual de integração.»

Há um momento inesperado neste diálogo: quando o entrevistador, o italiano Antonio Polito, interroga Eric Hobsbawm acerca das razões pelas quais tentou não se ocupar directamente, enquanto historiador, da União Soviética. Responde, simplesmente: «Sabia que, se o fizesse, teria de dizer coisas que seria difícil escrever para um comunista como eu sem tocar a minha militância nem a sensibilidade dos meus companheiros». O jornalista insiste: «É por isso que, como historiador, se ocupou prevalentemente do capitalismo?» Resposta frontal: «Sim, francamente sim. E foi também por esta razão que decidi tornar-me num historiador do século XIX, mais do que do nosso século [XX]. Porque via quanto tudo o que saía do Partido Comunista Soviético a propósito dos acontecimentos da História Contemporânea não era aceitável. (…) «Tem razão quando diz que depois de 1956 a minha militância se transformou e foi mais distanciada. Já estava claro, desde então, que o sonho tinha acabado. O secretário do Partido Comunista Britânico, em que estive inscrito até quase ao dia em que se desintegrou, nos momentos difíceis, dizia que era preciso ter uma linha directa com Moscovo. Pensava-se que o partido era um exército feito para executar ordens. Para os que como eu vinham de profissões intelectuais, era evidente que tínhamos de pensar pela nossa cabeça.»

Não sabemos quantos entenderão hoje esta linguagem que, simplificando, se traduz por declarar que a verdade nem sempre assume um valor absoluto (ou seja, que a verdade nem sempre é revolucionária, ao contrário do que sustentava Gramsci) quando não se quer «fazer o jogo do inimigo». Muito menos sabemos se esta seria a táctica mais adequada à conjuntura vivida pelos comunistas da Europa Ocidental durante a chamada «Guerra Fria». Sabemos bem, isso sim, que o exemplo de Eric Hobsbawm foi seguido um pouco por todo o lado por gente indignada que, integrada em sociedades capitalistas mas insatisfeita com os seus rumos económicos, sociais e políticos, lutava pelo socialismo. Como diz o historiador, por «lealdade a uma grande causa», esses militantes não queriam «acabar na companhia de todos os ex-comunistas que se tinham tornado anticomunistas»…

Eric Hobsbawm e Antonio Polito, «O Século XXI – Reflexões sobre o Futuro», Editorial Presença, 2000, 155 páginas