Viver/morrer em Montparnasse (Vasco de Castro)

António Rego Chaves

Recortei em tempos, uma a uma, estas inesquecíveis crónicas de Vasco de Castro. Sei lá onde jazem agora, fugiram-me entre os dedos com o correr dos anos. O que o autor publicava no «Diário de Notícias», quando alguns jornais generalistas podiam ser lidos sem desgosto por quem «sabia» que Paris era o umbigo do mundo, prendia a atenção da geração indignada a que pertenceu e que viveu com todas as suas forças os anos 60 do século XX. Porquê? Talvez porque «Montparnasse, mon village» falava da «pátria» que ela merecera. E porque ouvira de boa fonte que em Montparnasse poderia dar de caras, mesmo nas zonas adjacentes ao «boulevard», com a cabeça e o coração da vida.

Vasco de Castro nasceu em 1935 e habitou, entre de 61 e 74, uma Paris situada nos antípodas do «Paris, Texas» mostrado em 84 por Wim Wenders. Habitou-a enquanto desertor, militante político e artista, ou, nas suas palavras, como um «Fernão Mendes Pintosinho da segunda metade do século XX.» Colaborou no «Le Monde», no «Le Figaro» e no «France Observateur» na qualidade de desenhador satírico, fundou uma editora, participou em jornais «underground» e políticos. Regressado a Portugal, pôs de pé o «Página Um», tornou-se visível em múltiplas publicações e escreveu, além deste belo «Montparnasse» (1985), «Fotomaton» (1986) e «Leal da Câmara» (1996).

Crónica a crónica, narra-nos o seu quotidiano flanar parisiense, recorda quartos de hotel, a «Coupole» de Aragon e Elsa, «choucroutes» e «cassoulets», brancos e tintos, rios e rios de cerveja. E tudo o mais em que ocupava o tempo, aqui «dragueando» uma nórdica apetitosa (ai, que lá vêm as feministas com a mulher-objecto!), ali trabalhando e fazendo política, acolá à conversa pela noite fora, até raiar a manhã. Sabe-se lá se feliz se angustiado, ou alternadamente uma coisa e outra, mas decerto um jovem artista «portuga» mordendo com quantos dentes tinha – às vezes sem fundos para protésico que o livrasse de vez das cáries em curso – os frutos nunca proibidos da Rive Gauche.

Mas há também a história dos francos com que Sartre contribuiu para a causa anti-salazarista; ou a da fortuna perdida por uma empregada do «Dôme», então já bem arrependida de ter resistido aos avanços do malcheiroso Soutine, que lhe prometera em troca dos seus «favores» quadros que seriam avaliados, após a morte do artista, em milhões de francos; ou a do «golpe do turista» – pinturas «com uma mesa de toalha aos quadrados encarnados, com um exemplar do ‘Le Figaro’, uma garrafa meia cheia de ‘beaujolais’, um maço de ‘Gauloises bleus’ e uma ‘baguette’ de pão francês».

E também assistimos, por vezes, abalando-nos com a sem-cerimónia de um inesperado murro no estômago, à evocação de velhos companheiros de exílio para sempre perdidos, como José Escada ou Gonçalo Duarte. Ouçamo-lo falar do primeiro: «É muito amargo ser-se pintor e português ao mesmo tempo. O José Escada morreu aos 46 anos. Da última vez que nos vimos dançava numa ‘boîte’ do Bairro Alto, em Lisboa, e dançava sonambúlico e só no meio de pares frenéticos como um Zorba muito frágil ‘au bout de sa nuit’.» E do segundo: «O Gonçalo morreu pobre e só, exausto, aos 51 anos de idade. Era um homem religiosamente bom, até aceitar quase com normal indiferença o desprezo, o desprezo dos que o repeliam, e eram muitos. Poucos gostavam da sua pintura e menos ainda dele.» (…) «Com o rodar dos tempos, o cerco apertou-se, com isolamento e dinheiro sempre escasso, e repetia a frase terrível, ‘talvez estejam à espera que eu morra para depois me fazerem uma exposição’. Vivia com a sua última companheira, uma terna finlandesa, mas morreu só, no seu quarto da rue de La Grande Chaumière, em Montparnasse, e repousa para a Eternidade no cemitério do bairro, a dois passos do ‘Select’ e do ‘Dôme’. Entretanto, e como ele já bem o sabia, uma sombra de abutres herdou-lhe os quadros… e vai fazendo negócio.»

Bem pode o cronista citar Hemingway – e cita-o assim: «Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel.» Bem pode confessar-nos – e confessa: «Eu escrevia na altura um texto meio pomposo intitulado ‘Paralisia’. Sentia que uma paralisia comia o tempo nos nossos miolos, mas tão suavemente dentro que mal dava por isso. Montparnasse era um gueto, um gueto de ternuras, quase perfeito. Surgiam hipóteses de partir para Londres, Nova Iorque, Califórnia, ou ilhas gregas, encolhia os ombros e respondia… Ora, ora!...» Bem pode, enfim, fugir-nos de se mostrar dilacerado pela existência – e não poucas vezes nos foge, como quem se rende sem revolta aos acontecimentos: uma subtil amargura percorre estas crónicas, a subtil amargura da certeza de que o tempo perdido não será reencontrado, da renúncia a transformar o mundo, da repetição das sucessivas e íntimas catástrofes consumadas.

Verdade seja que, nas últimas páginas, quando lembra «os charutos e o champanhe do avião de 30 de Abril» [de 1974], explode de alegria e saudade, embora escolhendo pudicamente as palavras, ao referir os primeiros sinais da «Revolução dos Cravos» filmados pelo cineasta Alexandre Astruc: «Com um tenso e contido deslumbramento vi, em primeira mão e por mais de duas horas, o Carmo, as ruas da Baixa, o Tejo, os militares, a multidão em vagas… imagens mágicas que tentava decifrar e que para o responsável da emissão eram hieróglifos que eu ia ajudando a ordenar.» (…) «Quando a voz do piloto anunciou que se estava a entrar em Portugal, suponho bem que todos nos calámos e fomos espreitar por cima das nuvens, ingénuos como meninos, de que eram feitos os campos, a cor das árvores e adivinhar o nome dos casarios.»

Montparnasse lá ficava, memória de uma vida vivida «até ao esgotamento das horas» que não se pode ou não se quer retomar – talvez porque quem escolhe o exílio nunca consiga deixar de sonhar, nem que seja às escondidas de si próprio, com o regresso ao soturno berço involuntário que foi o seu. Talvez, mas que sabemos nós de tudo isso?

Vasco de Castro, «Montparnasse – Até ao esgotamento das horas», 2.ª edição, Campo das Letras, 2008, 221 páginas