O defunto «Estado Novo» (1)

António Rego Chaves

Reis Torgal é um historiador que muito respeito nos deve merecer, não apenas pela sua probidade intelectual, como pelo cuidado que põe em se apresentar, não como detentor de uma qualquer verdade absoluta, mas como um investigador que, ao interrogar-nos, se interroga a si próprio.

Posto isto, o recenseador apenas poderá aconselhar a todos, jovens e menos jovens, esta obra: aos primeiros, porque não viveram os «inolvidáveis» tempos da Pide, da Censura institucionalizada, do totalitarismo cultural estadonovista; aos outros, porque há que cuidar do tesouro da memória.

Atente-se bem: a minha geração viveu, pelo menos durante metade da sua vida, sob a Ditadura. Foi presa, excluída de funções a que, por mérito, teria direito, humilhada pelos esbirros arregimentados por Oliveira Salazar, apresentado hoje pelos seus admiradores, ora como um rigoroso asceta, ora como um vigoroso D. Juan das Beiras, amanhã, talvez, porque tudo, mesmo tudo, é possível, como um santificado Nun’Álvares dos «brandos costumes» torturadores da burocracia policial. Será preciso dizer mais?

Neste primeiro volume do seu consistente trabalho, decerto portador de algumas arestas que não nos abstemos de lhe apontar (ausência de índice onomástico ou ideográfico, acumulação de repetições de conteúdo, um certo centrismo nas investigações universitárias conimbricenses, com ou sem razão para tal opção), Reis Torgal oferece-nos uma lúcida perspectiva do Estado Novo: ora debruçando-se sobre as suas leis, instituições e formas de propaganda, ora questionando-se sobre a existência de um «totalitarismo à portuguesa», ora distinguindo-o do fascismo à «boa» maneira de Mussolini. Sem esquecer «casos» como o de Sílvio Lima – esse «homem humilde, mas livre na sua investigação» –, que nem o próprio Oliveira Salazar nem Gonçalves Cerejeira conseguiram vergar. Detenhamo-nos aqui um pouco, porque se trata de um facto exemplar: ao escrever, em 1930, algumas «Notas Críticas» à obra do dilecto «amigo» do ditador e futuro Cardeal Patriarca de Lisboa, «A Igreja e o Pensamento Contemporâneo», e depois de assinar um heterodoxo ensaio acerca do «Amor Místico», o docente da Universidade de Coimbra não caíra propriamente nas boas graças de Cerejeira e Salazar. Daí que o papel desempenhado pelo «ilustre purpurado» não tenha sido despiciendo na questão: o eminente professor foi exonerado, o segundo texto referido seria «exilado das livrarias, vendido clandestinamente como matéria inflamável» e a «verdade única», a tal que era proibido contestar, ganhou mais uma batalha contra Belzebu.

Pergunta o autor: «Estado Novo, Estado Católico?» Se não oferece dúvidas que não foi Salazar, mas o seu sucessor, Marcelo Caetano, quem pela primeira vez pôs o nome de Deus na Constituição, não é menos verdade que, já em 1933, o Cardeal Cerejeira lamentava «que o Estado se declare praticamente ateu, não reconhecendo expressamente a soberania de Deus, causa eficiente, exemplar e final do universo, fundamento da moral e do direito». Perante esta objurgatória de rançoso odor neotomista, o tiranete de Santa Comba manteve o prudente «catolaicismo» do «seu» Estado Novo. De resto, como se sabe, uma coisa eram as palavras da Constituição de 1933, outra os actos dos mandadores que desfraldavam a sua bandeira: um abismo separava a letra do texto fundamental da prática das instituições vigentes e do exercício das liberdades reconhecidas pelo célebre artigo 8.º.

Como muito poucos, Miguel de Unamuno entendeu, em 1935, a essência do Estado Novo: «uma espécie de fascismo de cátedra». E explicou: «A ditadura do núcleo que Oliveira Salazar representa é uma ditadura académico-castrense ou, se se quiser, bélico-escolástica. Ditadura de generais – ou de coronéis – e de catedráticos, com uma ou outra gota eclesiástica. Não muitas, apesar de o cardeal patriarca, Cerejeira, ter sido companheiro de casa de Salazar e, como este, também catedrático, eclesiástico catedrático, tal como outros militares catedráticos.» Seria difícil dizer melhor e ir mais ao fundo da questão em tão poucas palavras…

Não constituirá uma perda de tempo determo-nos no capítulo dedicado ao «marcelismo». Pensamos que Reis Torgal não necessitaria de consagrar tanto espaço à transcrição de textos oficiais, cingindo-se de preferência aos factos incontroversos: que nos importam as palavras, quando elas pouco ou nada têm a ver com a realidade vivida, a não ser para demonstrarmos que os documentos contradizem a brutal realidade dos acontecimentos? Existe desfasamento entre a lei e a prática política? Pois anote-se – e siga-se em frente. Há que explicar por que motivo Marcelo não foi «marcelista», mas apenas o símbolo do «salazarismo sem Salazar»? Pois faça-se o que Reis Torgal acaba por fazer: investigue-se o passado ideológico daquele que foi o Presidente do Conselho desde finais de 1968 até ao 25 de Abril, revele-se o essencial dos seus grotescos panfletos integralistas, monárquicos e nacionalistas, ou daqueles que «cozinhou» na qualidade de Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa, analise-se a sua concepção do «Estado Novo» ou do «Estado Social», exponha-se a sua arrogante ideologia colonialista, detecte-se, passo a passo, o seu oportunismo político. A conclusão só pode ser uma: «o Marcelo Caetano do marcelismo, no final da década de sessenta e no início da década de setenta, não é muito diferente do Marcelo Caetano dos decénios anteriores.» Ficamos esclarecidos?

Ainda não. Apreciemos esta «pérola» que o «intelectual» Marcelo Caetano nos legou, referindo-se ao grande Raul Brandão: «O ‘Húmus’, em qualquer país civilizado, seria um documento decisivo para um processo de interdição por demência.» Perante tal alarvidade, fica quase tudo dito sobre a catedrática boçalidade do indigno sucessor de Salazar. Assim como assim, esse ao menos dizia-se admirador da prosa de Aquilino Ribeiro…

Luís Reis Torgal, «Estados Novos, Estado Novo» (Volume I), Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, 673 páginas