Um cristianismo há cem anos (Chesterton)

António Rego Chaves

Este livro é, logo de início, decepcionante: sobretudo se começarmos pelos dizeres da sua contracapa. Reza assim o chamariz: «Com um século já decorrido sobre a primeira edição desta obra, eis que ‘Ortodoxia’ de G. K. Chesterton surge mais do que nunca actual, lançando o debate em torno dos valores modernos, e de como estes, ao contrário do que comummente se imagina, se encaixam no conceito de ortodoxia.» Não importa refutar ponto por ponto este chorrilho de disparates: basta lembrar que, durante todo o século XX, a teologia cristã se renovou de forma tão profunda que não é possível falar hoje dela sem nos reportarmos a nomes como os de Karl Barth, Rudolf Bultmann, Marie Dominique Chenu, Teilhard de Chardin, Dietrich Bonhoeffer, Yves Congar, Hans Urs von Balthasar, Henri de Lubac, Karl Rahner, Paul Tillich, Édouard Schillebeeckx ou Hans Küng; e que, quando o autor deste escrito o elaborou, quem se encontrava no trono de Pedro era Pio X (que se recusaria, em 1910, a receber o «herege» Theodor Roosevelt, ex-Presidente dos EUA e, em 1911, protestaria contra a separação da Igreja e do Estado em Portugal), Papa que engrossou de forma significativa o tristemente célebre Index dos livros proibidos, se mostrou benevolente para com o movimento de extrema-direita «Action Française», de Charles Maurras, e condenou nada menos do que sessenta e cinco «perigosas» teses que considerou «modernistas».

Todas estas informações – e muitas outras, quer referentes ao cristianismo actual, quer respeitantes ao dos inícios do século XX e à pesada herança deixada a Pio X por Leão XIII e por Pio IX, quer concernentes à biografia intelectual do autor – deveriam ser fornecidas numa meia dúzia de páginas de introdução, o que possibilitaria a incautos curiosos a integração histórica das matérias tratadas. Regendo-se pela lei do menor esforço, os editores não estiveram à altura da obra e do homem que a produziu – nem dos leitores. É pena, pois todos mereciam decerto mais do que um texto sem contexto.

Acresce que não é feita uma única referência na actual edição à de 1944, da Livraria Tavares Martins, que continha o já então indispensável excurso introdutório, ainda que parcial e um tanto propagandístico, mas também de carácter informativo, assinado pelo historiador monárquico e salazarista João Ameal, que lembrava, para de seguida um a um os contestar, os principais «delitos» apontados a G. K. Chesterton pelos seus críticos: «excessivo amor ao paradoxo; rebusca premeditada da originalidade; uso constante do sofisma; sistemática posição de humorista perante a vida e os homens.»

Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) foi jornalista, crítico literário, ensaísta, poeta e romancista – e apenas em 1922 formalizaria a sua conversão ao catolicismo. Escreveu a partir de então obras apologéticas como «São Francisco de Assis» ou «São Tomás de Aquino», assim como outros ensaios de carácter teológico, sendo porventura mais bem conhecido em Portugal pela obra de ficção intitulada «The Man who was Thursday», que começa por parecer um romance policial e acaba por se transfigurar em parábola acerca de Deus. Muito apreciado por escritores da envergadura de um Jorge Luis Borges e de um W. H. Auden, descreveu-se a si mesmo como «uma espécie de Torquemada reaccionário cuja alegria tenebrosa é apenas a defesa da ortodoxia e a denúncia dos heréticos.» A verdade é que, como fez notar Joseph de Tonquédec, «realizou o paradoxo de pôr o humor ao serviço da fé».

«Ortodoxia» é, a nosso ver, uma obra que, apesar de um quase intolerável abuso do paradoxo, da artificial originalidade, dos inúmeros sofismas e do por vezes descabido humorismo, deve ser lida, a fim de separarmos o trigo que nos proporciona do joio que passo a passo a contamina. Eis apenas três exemplos do melhor que nos pode oferecer:

Em primeiro lugar, a definição do conceito que dá o nome ao livro: «A palavra ‘ortodoxia’ refere o Credo dos Apóstolos, tal como era entendido, até há bem pouco tempo, por qualquer pessoa que se dissesse cristã, bem como o comportamento que, ao longo da história, tiveram as pessoas que aderiram às verdades contidas nesse Credo.»

Depois, uma comparação: «O budismo é centrípeto, o cristianismo é centrífugo.» (…) «O budista olha para dentro com uma intensidade profunda. O cristão olha para fora com uma intensidade frenética.» (…) «Se insistirmos na imanência de Deus, alcançamos a introspecção, o auto-isolamento, o quietismo, a indiferença social – o Tibete. Se insistirmos na transcendência de Deus, alcançamos o espanto, a curiosidade, aventuras morais e políticas, a recta indignação – o cristianismo.»

Por último, a interminável questão da riqueza e da pobreza: «O cristianismo continua a ter calor suficiente para pôr em ebulição a sociedade moderna, reduzindo-a a farrapos. O simples mínimo da Igreja é um ultimato letal para o mundo. Porque o mundo moderno assenta, todo ele e em absoluto, não tanto na ideia de que os ricos são necessários (que é uma ideia sustentável), mas na ideia de que os ricos são dignos de confiança, coisa que (para um cristão) é insustentável.» (…) «É difícil demonstrar que matar os ricos, por serem violadores de uma justiça definível, seja uma atitude anticristã. Aquilo que não é certamente uma atitude anticristã é a rebelião contra os ricos e contra a submissão aos ricos. Mas é absolutamente anticristão confiar nos ricos, considerar os ricos moralmente mais fiáveis do que os pobres.»

Acentuemos, porém, que o autor jamais ousa «descer» a comparar o «cristianismo ideal» com o «cristianismo real», fé com religião, subjectividade com objectividade, teoria com prática, o que fere de morte grande parte das suas teses. Concluindo, e tomando como alvo privilegiado pelo menos a Igreja Romana e milhões de pretensos «bons» católicos: «Bem prega Frei Tomás, olha o que ele diz e não o que ele faz…»

G. K. Chesterton, «Ortodoxia», Alêtheia, 2008, 231 páginas