Sofrimento de um ocidental (Wenceslau de Moraes)

António Rego Chaves

Jacinto do Prado Coelho fez notar que, para Wenceslau de Moraes (1854-1929) – como para Alberto Osório de Castro e para Camilo Pessanha – o Oriente foi «uma experiência vital decisiva». Escreveu o saudoso «mestre de leitura»: «Se a poesia de Camilo Pessanha, ao contrário do que se tem dito, só muito vagamente alude a um meio exótico (como notou Ester de Lemos, o seu orientalismo não é decorativo, mas ‘interior’ e ‘subtil’), ao mesmo autor devemos, em prosa, um volume de estudos sobre a China (1944). Também em prosa, Osório de Castro, cuja obra está impregnada toda ela de orientalismo, escreveu ‘A ilha verde e vermelha de Timor’ (1943). E Wenceslau de Moraes é o grande pintor português da Natureza, gente e costumes japoneses.»

A referida «experiência vital decisiva» encontra-se bem patente em «Ó-Yoné e Ko-Haru» (crónicas jornalísticas publicadas entre 1916-1920), esse «livro íntimo», por muitos considerado a obra-prima de Wenceslau de Moraes, votado à memória de duas mulheres, aliás tia e sobrinha, que amou, ou, como ele diz, «que passaram na sua vida». Tendo habitado no Japão desde 1898 até à morte na cidade de Tokushima, seu «cubículo de exílio», mergulhado em angústia e tristeza, devorado pela saudade dos seus entes queridos, o português jamais se sentiu integrado na sociedade nipónica, que de resto o depreciava, apelidando-o de «selvagem barbudo». Como sublinha Ana Paula Laborinho, «cultiva a agonia do inadaptado – saudoso da pátria e estranho no país estrangeiro» e «não tem a ilusão de se integrar no mundo japonês, como também está perdido para o seu mundo de origem, vivendo dolorosamente (mas também criativamente) a condição de inadaptado».

Se esta obra é hoje considerada a mais importante do autor – embora das menos lidas entre nós, pois a sua primeira e até agora única edição portuguesa datava de 1923 –, tal circunstância deve-se a razões que há muito foram explicitadas. Com efeito, como salientou em 1954 o embaixador Armando Martins Janeira, grande especialista de Wenceslau de Moraes, «pela primeira vez este tímido e reservado vai desvendar a sua alma, com uma franqueza e verdade tão crua que nos compadece (…) Pela primeira vez toma o lugar de principal personagem, não como gozador de paisagens e aspectos, mas como homem sincero, carregando os frutos dos seus actos, que na ideia budista são o quinhão do sofrimento reservado a todos os seres. Uma lufada de amor por todos os homens, pelos animais, pelas plantas, por todas as coisas, embalsama e aquece cada página». Mas será que Wenceslau de Moraes abraçou o budismo? Deixemos que seja o autor responder: «Budismo? Não. Sem dúvida, o meio religioso e místico em que vivo alguma influência haverá exercido em meu sentir. (…) Mas o que eu sinto na alma é muito menos e é muito mais do que o budismo; é a florescência estranha, a orquídea híbrida e luxuriante, só minha, desenvolvida e medrando no ambiente que lhe favorece os ímpetos, na estufa tépida do exotismo, do isolamento e da saudade! O perfume capitoso desta florescência poderia ter feito de mim um génio, mas não o fez; vem fazendo, porém, talvez de mim um louco.»

Saudade – eis a palavra-chave que pode desvendar o segredo deste livro tão pungente quanto apaixonante de um português que renegou o Ocidente «materialista» e escolheu para sempre o exílio. Saudade expressa desde a dedicatória da obra: «Àqueles que foram tocados do mal da tristeza, que vivem do sonho e da saudade, e só àqueles, é oferecido este livro insignificante. Os outros – a grande maioria – melhor farão poupando-se ao enfado de relancear as páginas que vão seguir-se.» Saudade de quem foi deixando «farrapos de alma (porque a alma se rasga e se dá quando se amam as coisas) por todo esse mundo exótico fora». Saudade de alguém que, desenganado dos vivos e desiludido das consolações que por longos anos esperou deles, fixa todo o seu sentir em duas mulheres amadas, «purificadas dos seus senões, dos seus defeitos, enobrecidas pela auréola dos martírios que sofreram, boas e belas com a bondade e a beleza com que as esmalta a condição de não-existência que desfrutam». Saudade tão profunda, tão visceral, que o leva a desejar, como salienta Tereza Sena, que os deuses o arredem de todo da cultura das letras, da erudição e da caligrafia para arremeter para o cemitério – «o verdadeiro templo da eternidade». Mas não parará de escrever, talvez porque escrever concentrado em Ó-Yoné e Ko-Haru é, para ele, a única forma de suportar a existência: «Se deixasse de pensar nelas, possível fora que morresse, como morreria se o ar que respiro me faltasse…a saudade, transformada em função normal e permanente, imprescindível no regular exercício da minha própria mentalidade!...»

Ainda restam, em 1920, nove anos ao escritor quando esboça este balanço da sua vida, dirigindo-se a um imaginário sacerdote budista: «Eu amei, amei muito; e só me pesa não ter amado mais. Eu aprendi a amar, nem tu podes supor como: – quando encontrei um dia, há muito tempo, duas borboletas bailando uma com a outra, beijando-se ao mesmo tempo, sobre as florescências perfumadas de um vergel; – e, em assuntos de amor, eu creio mais nas borboletas do que em Buda… Vais falar-me, talvez, de separação, de ruptura. Conheço as punhaladas da separação, da ruptura; conheço-as e ainda hoje o coração me sangra delas. Quisera ter dado outro desfecho a estes tristes lances; foi-me impossível. Mas não me lamento, não; mas não me arrependo, não. Amei, sofri, sofro; tudo acabou; tudo não, resta a saudade, que é ainda um dos aspectos fulgurantes do amor. E antes que tu, ó bonzo, ungido de irónica piedade, venhas sorrir com amargor em face da minha desventura impenitente, quero bradar-te ainda as minhas últimas palavras sobre este assunto interessante: – tu sabes muitas coisas, certamente; mas ignoras uma pelo menos, O GRANDE PRAZER DO SOFRIMENTO!...» Será esta uma voz integralmente «japonizada» – ou incorrigivelmente ocidental e lusitana, como sugeriu Urbano Tavares Rodrigues?

Wenceslau de Moraes, «Ó-Yoné e Ko-Haru», Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, 278 páginas