Vitória e morte do cristianismo (Ferdinand Lot)

António Rego Chaves

Publicado em 1927, este livro do historiador francês Ferdinand Lot perdeu já, sem dúvida, alguma parte da sua relevância, pois foram inúmeros os trabalhos entretanto consagrados ao tema que o ocupou. No entanto, como em qualquer outra obra de referência visando o período em causa, encontramos no presente texto uma sólida síntese que nos permite abordar a questão da derrocada do mundo antigo e do início da chamada «Idade Média» – «talvez o mais interessante e o mais importante dos problemas da História Universal» – bem cientes das dificuldades do terreno que pisamos.

Não se inscreve este estudo na célebre «revolta dos medievalistas», que quis esbater os contrastes entre Idade Média e Renascimento, em prejuízo deste último. Fosse no domínio científico ou no filosófico, grandes eruditos como Pierre Duhem ou Étienne Gilson procuraram filiar Leonardo e Galileu no occamismo do século XIV ou apresentar-nos o tomismo como um «enriquecimento» da filosofia grega. Havia, claro está, uma boa parcela de sectarismo nestas tentativas, ainda que elas só pudessem ser entendidas como réplicas às teses que veiculavam a ideia de acordo com a qual a Idade Média fora um longo período de obscurantismo. Mas, no que à Alta Idade Média se reporta, a tese que nos apresenta os séculos nela compreendidos como uma «época de trevas» não parece hoje despertar a controvérsia.

Como escreve Pierre Chalus na apresentação, «desta obra ressalta uma ideia essencial, a saber, a de que a ruína do Império, as invasões bárbaras e a expansão do cristianismo vieram a resultar numa completa transformação da psicologia humana, numa mentalidade autenticamente nova». Segundo salienta Ferdinand Lot, novas forças nasceriam, «sendo a elas que o futuro estava reservado: o Islão, cujo prodigioso êxito tem algo de milagroso; o Papado, que iria tomar nas mãos a direcção da Igreja e tentar dominar a sociedade civil; e, finalmente, a vassalagem, gérmen orgânico do regime feudal.» Só com estas forças teria começado a verdadeira Idade Média.

A história da Idade Média confunde-se, em grande parte, com a história do cristianismo. É fascinante acompanhar a exposição do autor quando, arrancando da repressão de que são alvo os cristãos dos primeiros séculos da nossa era, apesar da conhecida tolerância de Roma para com as religiões estrangeiras, nos faz notar que as perseguições «são retomadas em momentos críticos da história do Império, tal como nos casos dos trágicos reinados de Décio e Valério, em alturas em que a opinião popular, inquieta, procura uma causa para as desgraças públicas. Os cristãos, reputados maus cidadãos, por serem inimigos dos deuses cujas iras desencadeiam, eram os ‘traidores’ predestinados para servirem de bodes expiatórios.» Ou quando, a propósito de Constantino e do Édito de Milão, acentua que este não visava em particular os cristãos, pois também tinha como objectivo «dar a todos os outros a livre faculdade de seguirem a religião que escolhessem». A partir do ano 325, porém, tudo muda, «a religião de Estado reaparecerá e, consigo, a sua inevitável companheira, a intolerância.» Ou, ainda, quando observa: «Constantino é uma espécie de Bonaparte assinando a Concordata para reconciliar a Igreja com a Revolução e transformar os bispos em prefeitos mais submissos. Sumo Pontífice, pagão de direito, tornar-se-á facilmente no autêntico chefe da cristandade e reinará, assim, tanto sobre as almas como sobre os corpos.» (…) «Os perseguidos da véspera, transformados nos conselheiros mais íntimos do senhor, ficaram perfeitamente desvairados. A autoridade ama a autoridade. Homens tão conservadores como os bispos viriam a sentir uma terrível tentação de se reconciliarem com o poder público, cuja acção reconheciam como exercendo-se na maior parte dos casos em prol do bem… O ódio entre o cristianismo e o Estado é o ódio de quem acabará um dia por vir a amar-se.»

As consequências, físicas ou espirituais, da pretensa «conversão» de Constantino, que chegaram até aos nossos dias, são bem conhecidas: «No decurso do século V, os pagãos já tinham passado de maioria a minoria; e, no decurso do século VI, acabam por vir a desaparecer. Ao mesmo tempo, os cristãos reconciliam-se com a vida terrena e passam a prezar, e a prezar até mesmo muito, os bens deste mundo. Será que a sociedade cristã vai transferir parte da sua força para o Estado, com o qual passa, doravante, a ter óptimas relações? Sim, na condição de a Igreja estar unida.» Ora, a verdade é que «a ortodoxia» teve de vir a ser imposta autoritariamente, mediante uma longa série de demonstrações de força. E o inevitável resultado não se fez esperar: os indivíduos e os países que se recusaram a adoptar este ou aquele símbolo de fé tiveram fatalmente de resistir, não só à autoridade espiritual deste ou daquele bispo, deste ou daquele concílio, mas também ao imperador que, tornando seus os símbolos, os pretende impor. A rebelião política foi uma consequência fatal da oposição religiosa.»

As contrapartidas da inegável promiscuidade entre o que se convencionou chamar «poder espiritual» e o «Mundo» seriam de extrema gravidade – e não apenas para o cristianismo institucionalizado: «Apoiada pelo Estado, dispondo do Estado, a Igreja tornar-se-á, com extrema rapidez, intolerante e fanática, iniciando uma nova série de perseguições. A partir de Teodósio, os pagãos passam a ser constantemente perseguidos.» (…) A Igreja «acabará por lutar contra toda a opinião que se pretenda independente. Procurará abafar todo o pensamento livre, e é quase incompreensível que não o tenha conseguido.» A síndroma episcopal venceu o ascetismo. Ou, como observou Renan, «o cristianismo encontrou a morte na sua vitória»…

Ferdinand Lot, «O Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média», Edições 70, 2008, 544 páginas