Freud em corpo inteiro

António Rego Chaves

Este não é apenas mais um livro surgido em Portugal tomando como pretexto o 150.º aniversário do nascimento de Sigmund Freud (1856-1939). É uma obra que tem o mérito de nos remeter para a quase desconhecida biografia oculta do genial cientista e de integrar a Psicanálise no pensamento filosófico ocidental. Ludwig Marcuse faz notar, por outro lado, que o autor de «A Interpretação dos Sonhos» «aniquilou a maior oportunidade que alguma vez se ofereceu na história do auto-retrato: o retrato de Freud ‘pintado’ por ele próprio». (…) «O homem cuja psicoterapia tem por fundamento a entrega do mais recôndito, dos mais íntimos segredos, não estava disposto a realizar por si próprio essa entrega. Por isso, desde cedo cuidou que os vindouros conhecessem dele apenas uma imagem cuidadosamente censurada.» Aos 21 anos, escreveu à noiva: «Vamos dificultar a tarefa do meu futuro biógrafo. Destruí todos os diários dos últimos 14 anos. Cada um que julgue ser o único a possuir uma noção correcta da evolução do protagonista.»

Sabe-se, no entanto, que Freud não sublimou a sua vida sexual, dado que foi pai de seis filhos. Encarava-se a si próprio como um tradicional «chefe de família» e considerava uma calamidade a igualdade dos sexos, tendo forjado a concepção de acordo com a qual a mulher inveja o órgão sexual masculino. Por outro lado, contou que a sua nevrose revertia «a uma mulher de meia idade, feia mas inteligente», que lhe falava muito de Deus e do inferno e sua «mestra em assunto sexuais», que «lhe ralhava muito sempre que era desajeitado e inepto», origem de todos os temores perante todas as inaptidões. O pequeno Sigmund viveu edipianamente (normalmente?) a líbido em relação à mãe quando a via nua e experimentou o clássico «sentimento de culpa» quando morreu um irmão, um ano mais novo, «cuja vinda ao mundo recebera com má vontade e genuíno ciúme infantil». Fica assim levantado o problema das raízes da sua obra, porventura inseparável do retrato do cientista quando criança – não esquecendo que este poderá ser, por esse mundo fora, idêntico ao de biliões de homens de todos os tempos. Salienta Ludwig Marcuse que «Schopenhauer disse com toda a sinceridade que o seu sistema, porque era ‘a primeira comunicação de um pensamento inteiramente novo’, não podia deixar de estar eivado ‘da marca da individualidade em quem primeiro se gerou.’» A mesma observação poderíamos aplicar a Freud.

Estigmatizado por médicos, teólogos e moralistas, vítima de anti-semitismo nos meios universitários, marginalizado pela burguesia bem-pensante de Viena, viria a assumir que «a vida é como se sabe muito difícil e complicada, e há muitos caminhos para o cemitério…» mas nenhum para Deus, para a verdade intemporal ou para qualquer eficaz lenitivo. A vida foi, de facto, complicada para Freud. Não esqueçamos o que sobre ele escreveu, em 1934, qual infame mensagem delatória endereçada à Gestapo, um dos seus dilectos discípulos, o racista Carl Gustav Jung: «Na minha opinião, o grave erro da psicologia médica consistiu em ter aplicado inadvertidamente a categoria judaica aos germanos cristãos; desse modo considerou pueril e banal o precioso mistério do homem germânico, o seu fundo psíquico, demiúrgico e sonhador.»

Como os mais famosos irracionalistas da cultura alemã, Novalis, Schopenhauer ou Nietzsche, Freud era sobretudo um adorador da razão. «Levou a luz do sol ao mundo subterrâneo, a lógica ao ‘reino do ilógico’.» Atreveu-se a penetrar nas «cloacas da alma», partindo da análise do amor pela mãe, do ciúme em relação ao pai (complexo de Édipo), do medo do pai (complexo de castração), da admiração pelo pai (identificação), da rivalidade com o pai e os irmãos, ou seja, a vontade de poder. Como acrescenta o autor, «a utopia que Freud nunca escreveu seria do seguinte teor: uma vida só com a mãe.» Poderia a hipócrita burguesia de Viena tolerar tais desplantes?

Expondo os principais conceitos da Psicanálise, a sua concepção da cultura, da religião e das artes, levando-nos a colocar frente-a-frente Freud e os poetas alemães, comparando a importância da sua obra com as de Einstein, Marx ou Kierkegaard, Ludwig Marcuse entrega-nos uma síntese fascinante que, como poucas, logra situar o pensamento do autor da «Psicopatologia da Vida Quotidiana» no contexto europeu onde desenvolveu as suas teorias científicas. Não será esse o menor dos seus méritos.

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Aviso aos incautos – Lê-se na contracapa: «Ludwig Marcuse, o grande pensador e filósofo alemão de cujas doutrinas tanto se reclamaram – nem sempre com autenticidade e clareza – muitos dos jovens contestatários europeus da década de 60…». Segue-se outro disparate, metendo no mesmo saco o efeito da Psicanálise sobre as «concepções teocentristas, psicologistas e pragmatistas que pareciam destinadas a ter curso eterno». E uma adversativa sem razão de ser, como se não fosse exigível a qualquer ensaísta analisar o pensamento alheio com espírito crítico. Folheio o livro e descubro uma nota bibliográfica das obras do autor da qual não constam os textos de Marcuse (1898-1979) que se tornaram célebres no Maio de 68, como «Eros e Civilização» (1955), «O Marxismo Soviético» (1958) ou «O Homem Unidimensional» (1964), mas inclui, com os títulos em língua alemã, ensaios sobre Strindberg, Heine ou Inácio de Loyola. Reparo depois que a tradução é da autoria de Manuela Pinto dos Santos, que aliás verteu exemplarmente para a nossa língua, em 1985, a «Crítica da Razão Pura» de Kant. Leio, então, na segunda página impressa: «1.ª edição. Lisboa, Abril de 2006.» Ora: 1) Esta obra foi editada pela primeira vez em Portugal, na colecção «LBL Enciclopédia», da Livros do Brasil, no mínimo há 45 anos. 2) A tradução é a mesma, só que muito menos generosamente polvilhada de «gralhas»; 3) A presente falsa primeira edição suprime levianamente o índice onomástico que acompanhava a anterior. 4) O lesto contracapista confundiu Ludwig Marcuse (1894-1971) com Herbert Marcuse, este sim, frequentemente reivindicado como «guru» do Maio de 68. Ignorância, desleixo, avidez comercial? Seja como for, imperdoável.

Ludwig Marcuse, «Freud e a Psicanálise», Livros do Brasil, 2006, 204 páginas