Gianni Vattimo/Que cristianismo para o século XXI?

António Rego Chaves

O nome de Gianni Vattimo é bem conhecido dos leitores portugueses de filosofia, que têm à sua disposição várias das suas obras, como «O Fim da Modernidade», «As Aventuras da Diferença» ou «A Sociedade Transparente». O texto agora publicado em França com o título «Après la chrétienté» pode inserir-se na sequência de «A Religião» (que organizou com Jacques Derrida) e «Acreditar em Acreditar», também já editados entre nós.

Qual a tese do filósofo italiano neste livro? Simplificando-a – mas procurando não a deturpar no essencial – sustenta-se a necessidade de pôr de parte o Deus da metafísica e da escolástica para, precisamente, tornar possível a crença no Deus da Bíblia.

Vattimo considera que já não existe qualquer filosofia (seja ela historicista, como o hegelianismo e o marxismo, ou positivista, como as diversas formas de cientismo) que pretenda poder demonstrar a não-existência de Deus. Daí que lhe pareça aberto o caminho, em pleno século XXI, para regressar ao Livro dos Livros, não apenas como uma das obras que marcaram de forma mais profunda o «paradigma» da cultura ocidental, mas, acima de tudo, como um incontornável suporte de uma fé cristã autónoma em relação à razão.

Escreve o nosso autor: «Uma tal concepção da fé pós-moderna não tem evidentemente nada a ver com a aceitação dos dogmas definidos de maneira rígida ou de disciplinas impostas por uma qualquer autoridade. Claro que a Igreja é importante como veículo da revelação, mas é-o também e sobretudo como comunidade de crentes que, na caridade, escutam e interpretam livremente, ajudando-se e portanto corrigindo-se uns aos outros, o sentido da mensagem cristã.»

Reputado especialista de Nietzsche, Heidegger e Hans-Georg Gadamer, Vattimo revela-se também um atento estudioso de Novalis, Schelling e Schleiermacher, tal como da filosofia medieval. Não se inibe de recorrer a Joaquim de Fiore (1145-1202) para recordar a teologia da história do abade calabrês. Pouco lhe importam «a morte de Deus» (Nietzsche) ou «o fim da metafísica» (Heidegger). Nenhum destes anúncios do desaparecimento do «Deus moral» – que é, afinal, «o Deus dos filósofos» – o impede de perfilhar a interpretação «espiritual» (não-literal) da Bíblia advogada por Fiore, que modifica e completa as diferentes teorias dos sentidos múltiplos da Escritura. Depois do medo ao Pai (Antigo Testamento) e da fé no Filho (Novo Testamento), eis chegada, não ao Céu, mas aqui mesmo à Terra, a terceira era da história da salvação, a idade do Espírito Santo – um tempo de caridade. Por outras palavras: depois da escravatura e da submissão filial, a amizade, o amor, a liberdade.

Perguntarão alguns em que mundo vive Gianni Vattimo, se neste onde Job é todos os dias confrontado com os escândalos da iniquidade, do sofrimento e da morte, se num outro que é simples produto do seu incontido desejo de apostar no Homem e em Deus. Desiluda-se quem pensar que estamos perante um pensador despolitizado ou refugiado numa inatingível «torre de marfim»: muito pelo contrário, têm sido bem nítidos e constantes os seus compromissos, nomeadamente enquanto deputado europeu, com as grandes causas da esquerda, do pluralismo cultural e do ecumenismo.

Insinua-se no texto um perfil cada vez mais frequente entre os intelectuais ocidentais da pós-modernidade, solidárias mas solitárias vozes que não abdicam, nem dos seus deveres de cidadania, nem do cristianismo que ainda (ou já) consideram possível. E que nos propõem, não uma cultura da certeza e suficiência, mas de dúvida e permanente interrogação, não uma cultura da verdade rígida e inabalável, mas de múltiplas interpretações flexíveis, não uma cultura da arrogância do dogma, mas de humildade do «pensamento débil». Também por isso aqui se recomenda urgente tradução para português – no mínimo a literal –, de mais esta «provocação» de Gianni Vattimo…

Gianni Vattimo, «Après la chrétienté – Pour un christianisme non religieux», Calmann-Lévy, 2004, 204 páginas