Arnold Gehlen (Ensaios de Antropologia Filosófica)

Os fins, os meios e as virtudes

António Rego Chaves

A exemplo de outras grandes figuras do pensamento alemão do século XX, como Martin Heidegger (1889-1976) e Carl Schmitt (1888-1985), Arnold Gehlen (1904-1976) aderiu ao Partido Nacional-Socialista em 1933, logo após a democrática ascensão ao Poder de Adolf Hitler. Esse facto cria uma insuperável ambiguidade em relação aos três intelectuais, a saber, se a sua filiação nazi se deveu a razões de ocasião ou oportunidade – no caso, talvez fosse melhor falar em oportunismo – ou a uma profunda empatia ideológica com as teses defendidas pelo tristemente célebre panfleto «Mein Kampf».

Fosse como fosse, a verdade é que Gehlen ocupou, logo a seguir, um lugar académico subtilizado ao socialista Paul Tillich, forçado ao exílio, e depois o do seu antigo orientador de tese, o «judeu» Hans A. Driesch. Em seu abono se saliente, porém, que, apesar de ter escrito uma «Filosofia do Nacional-Socialismo» em 1935, a deixou ficar na gaveta e que os seus escritos entre 1933 e 1938, marcados por um belicoso nacionalismo, não avalizam nem o racismo nem o chamado «anti-semitismo» nazi.

Neste sombrio contexto, não será deslocado acentuar a prolongada ressonância que as investigações do etólogo austríaco Konrad Lorenz, a quem seria atribuído em 1973 o Nobel da Medicina, viriam a ter na Antropologia Filosófica de Arnold Gehlen. Pelo menos desde o seu primeiro trabalho de fôlego, «As Formas Inatas da Experiência Possível» (1943), o cientista – também ele membro do Partido Nazi – esteve muito presente nas reflexões do filósofo quando comparou homens com animais.

Esboçado o perfil da personagem, fica-nos, pois, a obra – e essa vale bem a pena. «O Homem. Sua Natureza e seu Lugar no Mundo» (1940), o mais ambicioso texto de Arnold Gehlen, não terá a fecunda densidade de «Ser e Tempo» (1927) de Martin Heidegger ou de «O Conceito do Político» de Carl Schmitt (1932), mas possui o inegável atractivo de nos surgir hoje como histórico marco da Antropologia Filosófica, depois de «A Situação do Homem no Cosmos», de Max Scheler (1928). Este entendera-a, porém, como uma ponte entre as ciências empíricas e a metafísica – concepção esta que o autor dos «Ensaios de Antropologia Filosófica» sempre se recusou a acolher, porque alheado de qualquer meditação sobre Deus.

Gehlen ocupa-se da natureza do homem, da sua situação do mundo, das formações culturais – instituições, mitos, linguagens – e das questões levantadas pela técnica, nomeadamente nas sociedades industrializadas do século XX. Considera que o homem, ao contrário dos outros animais, nasce desprotegido na luta pela vida e que a linguagem, as instituições sociais, as técnicas e genericamente a cultura constituem uma «readaptação» ao meio.

Talvez a faceta mais reaccionária (no sentido de «oposto à transformação da sociedade») do pensador, depois do nazismo, se tenha manifestado pelo seu «fundamentalismo institucional», que o conduziria a um vivo debate com Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel. Aliás, é curioso observar que porventura só à luz desse incondicional apego a toda e qualquer ordem estabelecida se pode entender o seu apoio, em 1968, à intervenção do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia e a sua grande estima, então, pela URSS.

Rejeitando o clássico dualismo corpo/alma, Arnold Gehlen concentra a atenção na acção do ser humano, ou seja, na transformação consciente e planificada da realidade por meio do trabalho físico e intelectual, criador de cultura. Animal frágil e vulnerável, mas, ao contrário de todos os outros, capaz de inventar os meios que lhe tornam possível subsistir em qualquer ponto do Planeta, «nos desertos, nas regiões polares, nas altas montanhas, nas estepes, nas zonas pantanosas, sobre a água e em todos os climas», o homem revoluciona o meio ambiente onde vive e «edifica» o seu mundo.

O ser humano, como dizia Herder, é a «criatura lacunar». Que quer isto dizer? Explica Gehlen: «Isso não significa apenas que ele não tem pelagem de protecção natural contra as intempéries ou, de uma maneira geral, órgãos que lhe permitam proteger-se contra a natureza hostil (quer estas sejam couraças, quer possibilidades de fuga especializadas), que não dispõe de órgãos de ataque nem de armas naturais integradas, que a acuidade dos seus sentidos é muito limitada e que cada um dos seus sentidos é amplamente ultrapassado por cada um desses sentidos entre os animais. Significa também que padece de uma falta de autênticos instintos, susceptível de lhe fazer correr um perigo mortal, quer dizer, de modelos de movimento inatos, eficazes e feitos para responder aos riscos mortais.» Corolário lógico: «Em condições naturais, originais, o homem, considerado apenas como um potencial de existência, em função dos órgãos de que está provido, e vivendo no solo entre os animais mais ágeis na fuga e os mais perigosos predadores, teria sido exterminado há já muito tempo.»

Ser «inacabado», «em risco», com características «não fixas», «entregue a si próprio», o homem teve de começar por «arrancar ao mundo», definido negativamente como «terreno de aventura», as condições da sua existência: mas foi-lhe possível usar um «órgão de actividade previdente», «o órgão psicomotor», construído para a «acção dirigida» – o cérebro. «É a infinita plasticidade do comportamento que está representada pelo cérebro; nesse sentido, o cérebro é decerto altamente desenvolvido, mas de nenhuma forma especializado, se essa especialização vier a par de uma perda da plenitude das possibilidades: ele é o órgão feito ‘para todos os fins’.»

Nos dicionários, a entrada «etologia» é precedida de uma outra, que dá pelo nome de «ética». Quando falamos de fins (e de meios) convém que leiamos ambas: talvez evitemos assim cair na tentação de esquecer as virtudes (que Platão disse serem a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança), «afogando» a Antropologia Filosófica possível num oceano de Etologia...

Arnold Gehlen, «Essais d’Anthropologie Philosophique», Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 2009, 190 páginas