Viagem à noite interior (Dostoievski)

António Rego Chaves

Verdadeira viagem à noite interior – de Dostoievski, de uma personagem, de todos os homens –, «Cadernos do Subterrâneo» (1864), livro-charneira na obra do genial escritor russo, representa uma acentuada ruptura na direcção da sua gigantesca criação posterior: citemos apenas «Crime e Castigo» (1865), O Idiota (1868-1869), «Os Possessos» (1870), «Os Irmãos Karamazov» (1879-1880). Uma só vida não basta para a decifrar.

É a maldade, o sadismo, o egoísmo, a mesquinhez, a cobardia, a inveja, o ódio, a humilhação, o ressentimento, a sede de vingança, a prepotência dos tiranetes, a pulhice, que Dostoievski descobre ou inventa dentro de si e perante si, tudo próprio da natureza – ou da condição? – humana. Nada lhe é estranho quando mergulha nos abismos de dor, ele que possui a vivência de quatro anos de trabalhos forçados, do pelotão de fuzilamento pronto a executá-lo, de toda a espécie de tragédias físicas e psíquicas. O homem subterrâneo que nos traz à superfície, para que o vejamos e vejamos nele a imagem dos outros e a nossa própria imagem, não é apenas um súbdito dos czares do século XIX: pode ser também um homem do nosso tempo, um homem de todos os tempos, tão degradado pela sociedade quanto por si próprio, impotente para vencer a sua miséria moral. Diz: «Tudo o que fiz na vida foi levar até ao limite o que vós mesmos tivestes medo de levar nem que fosse até meio, tomando além disso a vossa cobardia por bom senso – o que vos consola e vos ilude.» Mas há algo de que o homem subterrâneo não abdica: o livre arbítrio. Declara o narrador, com a raiva de quem quer reduzir a estilhaços o utilitarismo do filósofo Jeremy Bentham e o optimismo do historiador Henry Thomas Buckle: «Que o mundo desapareça ou que eu me prive de uma chávena de chá? Pois bem, que o mundo desapareça e que eu tenha a minha chávena de chá.»

Observará Dostoievski: «Só eu evoquei a trágica condição do homem do subterrâneo, o trágico dos seus sofrimentos, da sua culpa, das suas aspirações ao ideal e da sua incapacidade de alcançá-lo; só eu evoquei a lúcida percepção que esses seres miseráveis possuem da fatalidade da sua condição, uma fatalidade tal que seria inútil reagir contra ela.» E comentará George Steiner: «O homem das profundezas possui a inteligência sem o poder, o desejo sem meios [para o satisfazer]. A revolução industrial ensinou-o a ler e deu-lhe um pouco de diversão; mas o concomitante triunfo do capital e a burocracia deixou-o sem abrigo. Senta-se à sua mesa de escriturário, (…) afadiga-se num sarcástico servilismo, sonha com mundos mais esplêndidos e volta para casa à noite arrastando os pés. Vive no que Marx caracterizou como um amargo limbo entre o proletariado e a verdadeira burguesia. Gogol conta o que lhe sucede quando por fim compra um capote; e o fantasma [da sua personagem] perseguirá não apenas os funcionários e guardas-nocturnos de São Petersburgo como as imaginações dos romancistas europeus e russos até à época de Kafka e de Camus.» Ainda Steiner: «O ‘eu’ [dos ‘Cadernos’] diz repetidamente que a sua filosofia ‘é fruto de quarenta anos de subterrâneo’, de quarenta anos no isolamento da busca de si mesmo.» (…) «A tragédia do homem do subterrâneo é, literalmente, o seu afastamento da humanidade.» O nocturno anti-herói de Dostoievski posiciona-se contra sábios, idealistas, crentes no progresso; apresenta-se como «uma criatura ingrata de duas pernas».

Neste contexto, bem pode René Girard clamar que «o Dostoievski genial é o Dostoievski romancista» e decretar «o carácter gratuito, arbitrário e brutal da sua prosa não romanesca». Seria cómodo, para os que não querem encará-lo como pensador, reduzi-lo ao papel de um distraído ficcionista que, de vez em quando, lá vai deixando escapar umas ideiazinhas nas entrelinhas dos seus romances. Queira ou não queira o autor de «Critiques dans un souterrain», Dostoievski publicou «Pobre Gente» (1846), «Humilhados e Ofendidos» (1861) e «Recordações da Casa dos Mortos» (1861), antes dos «Cadernos»; e, depois, no «Diário de um Escritor» (1873-1881), toma posição, enquanto nacionalista e cristão ortodoxo, perante os grandes problemas da época, sejam eles nacionais ou internacionais, sociais ou individuais, militares ou culturais. Mais: em 1880, na pública homenagem a Pushkin, não deixa dúvidas acerca da consistência do seu pensamento político, moral e religioso – nomeadamente no que se refere à definição da fraternidade com os «irmãos europeus» e da eslavofilia, de que foi insigne representante, contrariando as teses das elites intelectuais ocidentalistas.

Diz o narrador de «Cadernos do Subterrâneo»: «A razão, meus caros, é uma coisa boa, isso é indiscutível, mas não é mais do que razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; o desejo, porém, é uma manifestação de toda a vida humana, inclusive da razão e de todas as coçadelas de meninges. E embora essa manifestação seja, na nossa vida, uma miséria, não deixa de ser sempre vida [‘vida viva’] e não a extracção da raiz quadrada. É que eu, por exemplo, quero viver, muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não apenas para satisfazer a minha capacidade racional, ou seja, qualquer coisa como a vigésima parte da minha capacidade de viver.» (…) «A natureza humana funciona totalmente em conjunto, com tudo o que tem, consciente e inconscientemente, e, mesmo que minta, vive.»

Que é isto? Literatura? Filosofia? A fronteira é ténue – e só arrogantes vestais do templo das ideias se atreverão a banir «Os Cadernos do Subterrâneo» do terreno do pensamento, detendo-se apenas no seu «puro» carácter literário. Na verdade, cremos que qualquer meditação filosófica que não se abra a um Pascal, a um Kierkegaard, a um Unamuno – ou a um Dostoievski, a um Kafka, a um Camus –, ignorará algo de essencial no humano. A menos que por humano se decida entender um ser que não é «de carne e osso», mas razão, só razão, nada mais do que pobre razão...

Fiódor Dostoiévski, «Cadernos do Subterrâneo», Assírio & Alvim, 2000, 191 páginas