Três olhares, uma geração (Geração de 70)

António Rego Chaves

Amadeu Carvalho Homem, professor da Universidade de Coimbra e especialista da história portuguesa contemporânea, reúne nesta sua obra sete estudos consagrados a temas oitocentistas. São eles: «Tópicos Teofilianos», «Antero de Quental e Teófilo Braga – um exercício comparativo», «Para uma leitura sociológica e política da ‘Questão Coimbrã’», «O Curso Superior de Letras e a Geração de 70», «Razão e sentimento na evolução espiritual de Ramalho Ortigão», «Panteísmo, positivismo e cientificismo materialista no ideário da Geração de 70» e «O grupo dos ‘Vencidos da Vida’ ou a política servida à mesa».

Diz o autor: «O olhar duro e militante de Teófilo Braga cruza-se com o olhar pragmático e elitista de Ramalho Ortigão e com o olhar, ora diaporético, ora angustiado, de Antero de Quental. O facto de irmos surpreendendo, nesta viagem, as encruzilhadas do republicanismo, do socialismo e do conservadorismo tradicionalista, em íntima e unívoca relação com essas três formas dissemelhantes de olhar o Mundo e a Vida, alimentam a nossa esperança de termos conseguido, ainda que imperfeitamente, praticar ainda aqui a metodologia presente em todos os nossos trabalhos: tentar a compreensão da História a partir da teoria e da praxis de homens singulares, de carne e osso, sempre capazes do melhor e do pior, sempre oscilantes entre o Amor e o Ódio.» Anotemos que este livro silencia as interpretações daqueles que desde há muito produziram obras de referência na matéria: Joaquim de Carvalho, Hernâni Cidade, Joel Serrão e António José Saraiva são apenas quatro exemplos gritantes.

Mas a verdade é que Amadeu Carvalho Homem trata Teófilo, Ramalho e Antero por «Tu», tornando-nos presentes as suas existências e as suas ideias. Procuremos ver como, partindo da «Questão Coimbrã» (1865/66). Começa o investigador por nos sublinhar que «não subsistem dúvidas que os factos históricos realmente significativos para o destino dos homens e das civilizações comportam simultaneamente dimensões económicas, políticas e culturais», inserindo no contexto de uma sociedade já bafejada pelo liberalismo e pelo direito à opinião a querela que se iniciou com Antero e Teófilo, de um lado, e o «pontifex maximus» António Feliciano de Castilho e seus apaniguados, do outro. Castilho abre as hostilidades, ao elogiar o delicodoce «Poema da Mocidade», do seu «protegido» Pinheiro Chagas, e atacar as «plásticas, estéticas, filosofias e transcendências» em que mergulhavam «os engenhos juvenis» dos dois alunos da Universidade de Coimbra – onde, aliás, Antero era bem conhecido e estimado pelos seus contemporâneos, que viam nele, não apenas o poeta ou o pensador, mas, sobretudo, o líder estudantil. Esclarece o autor que tal provocação se limitava a dar continuidade a outras objecções, anteriormente expendidas por Pinheiro Chagas, Camilo e pelo próprio Castilho e que nelas «se interpelava o prólogo filosófico com que abria o volume de versos intitulado ‘Tempestades Sonoras’, de Teófilo Braga, e o hegelianismo que Antero de Quental transportara para as suas ‘Odes Modernas’». Mas o mais intolerável para Castilhos, Chagas e Camilos era a «Nota sobre a missão revolucionária da poesia» inserida nas «Odes Modernas». Os ultra-românticos e neo-clássicos da «Sociedade do Elogio Mútuo» não podiam suportar que fosse apontada à poesia a função de subverter os valores conservadores, literários e políticos, dominantes na sociedade da época.

Acrescenta Amadeu Carvalho Homem: «O desenvolvimento da polémica permitirá distinguir claramente duas orientações: a orientação maioritária, favorável ao círculo lisbonense, que continua a conferir à literatura um estatuto estético e categorial descomprometido, tanto quanto possível, dos anseios de reorganização social, e uma orientação minoritária, identificada com a causa coimbrã, que pretende encaminhar a literatura para uma estética de intervenção, servida por novas categorias, ajustadas à apresentação e defesa de alternativas sociopolíticas.» É depois de Antero já ter escrito o célebre «Bom Senso e Bom Gosto» e Teófilo assinar o texto «Teocracias Literárias», visando «o desmantelamento completo da figura moral de Castilho», que Ramalho entra em cena: baralha e dá de novo, insultando ambas as partes. Ou seja: em «Literatura de Hoje» tem o condão de ofender gravemente Antero e Castilho. «O folheto de Ramalho, diz o historiador, constitui a superlativa defesa do tradicionalismo político e da estabilidade social.» Eis uma tirada bem reveladora da «ramalhal» ideologia: «Não, o ideal da poesia não é Ulisses, o incendiário; é Eneias, o pio, fugido às chamas, levando a espada no punho, a resignação na alma, e aos ombros o seu velho pai e os seus venerandos penates; salvando, guardando e reconstituindo para a posteridade, para a imortalidade e para a glória as tradições da família, as da religião e as da pátria.» Nem um Rafael Bordalo Pinheiro desenharia mais certeira caricatura de um «fóssil» oitocentista…

Concluindo: «Poderemos considerar a ‘Questão Coimbrã’ como uma espécie de antecâmara anunciadora das tensões histórico-políticas e histórico-sociais que irão esmaltar as evoluções futuras. A rebelião dos dois expoentes conimbricenses cedo abandonará o limbo da expressividade literária para se librar no céu contingente de opções militantes alternativas. O ataque à vigente cultura cartista, aqui exemplarmente ilustrado, prolongar-se-á nas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, promovidas pelo ‘Cenáculo’ anteriano em 1871. Antero de Quental sedimentava, por então, à lareira de Proudhon, a sua convicção socialista; Teófilo Braga, convidado pelo seu conterrâneo para nelas intervir, preparava-se para refazer toda a sua disciplina mental sob o influxo do positivismo comtiano e para oferecer ao republicanismo em gestação um contributo inestimável. Ao ‘Cenáculo’ lisboeta de Antero acorreria Ramalho Ortigão (…) tecendo com Eça de Queiroz o projecto que se cumpriria com a publicação da primeira série d’As Farpas.» Neste contexto se pode afirmar, com Alberto Ferreira, que «o romantismo se torna militante [socialista] e republicano e o realismo põe a burguesia em camisa» – sem que sejam esquecidos o desesperançado abandono final de Antero, a dogmática cegueira positivista de Teófilo e a prolongada caquexia política do Ramalho das «Últimas Farpas».

Amadeu Carvalho Homem, «Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Antero de Quental – Diálogos Difíceis», Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, 176 páginas