Um livro para habitar (António Vieira, «Ensaio sobre o Termo da História»)

António Rego Chaves

Este talvez não seja um texto para apenas ler, mas um livro para habitar. Expliquemo-nos. Após a publicação da primeira versão, em 1994, do seu «Ensaio sobre o Termo da História», contendo «353 aforismos contra o Incaracterístico», António Vieira viu-se confrontado com múltiplos sintomas de mal-estar por parte de numerosos amigos e colegas de docência universitária. Nas suas palavras, estes «exibiram uma larga gama de sentimentos hostis, da compunção à acédia e da compaixão ao desdém, como se eles se sentissem enigmaticamente ofendidos e se reconhecessem identificados em flagrante com alguma das personagens alegóricas que animavam o texto». Recusar-se-iam os pretensos «ofendidos» a ver com olhos de ver a realidade que os circundava, ou até a olhar-se a si mesmos?

O alvo é, pois, o Incaracterístico – desejar-se-ia que com muitas excelentes excepções, grande parte dos indivíduos que constituem a sociedade em que vivemos. Contra o Incaracterístico («sujeitos lineares», «almas incaracterísticas», dizia o poeta João Alphonsus) arremessa o autor, nesta nova versão, 365 itens, assim concebidos: «Os aforismos querem-se como lâminas de luz cintilantes, sucessivas e importunas – como cutelos que caiam um por um sobre a faculdade de ajuizar do leitor, intersectem a sua passividade e animem a sua razão crítica.» Por isso dizíamos que este talvez não seja um texto para apenas ler, mas um livro para habitar. Ainda ou porque inquietante, ainda que obrigue ou porque obriga o leitor a questionar-se. E também porque «os aforismos não são afeiçoados como armadilhas, mas forjados e temperados, medidos e afiados como armas».

Que sociedade é esta em que estamos inseridos? Segundo o ensaísta, a sociedade da Grande Estupidez e do seu omnipresente mercenário, o Incaracterístico. A «sociedade do simulacro, onde se simula os astros, os seres vivos, o começo do universo, o destino do homem, e tudo isso em função das acções da banca e das oscilações do preço do petróleo». A sociedade que «metamorfoseia a igualdade de direitos dos cidadãos perante a lei na radical desigualdade da lei perante os cidadãos». A sociedade em que tudo está à venda e se apresenta como mercadoria: sabonetes, seitas religiosas, partidos políticos. A sociedade em que o Incaracterístico-eleitor escolhe o Incaracterístico- político/polícia. Uma «Sociedade Absurda».

Tendo o olhar sempre voltado para o pragmático, para a eficácia, para o lucro, ávido de extensos ou mesquinhíssimos poderes, o Incaracterístico, ele próprio um escravo da mercadoria, mesmo quando se julga seu senhor, tudo e todos encara como mercadorias. E assim o individualismo do homem-primata, substituído pelo colectivismo do homem-térmita, se desfaz numa tirania económica veiculada por um arremedo de democracia. Lembra o autor, decerto bem distante da «acção directa»: «Os anarquistas tinham reunido argumentos para denunciar o Estado: ora, eis que o Estado não existe mais senão sob as espécies de uma negaça, engolido pela absurdidade da qual forma o aparelho burocrático – e torna-se premente que os anarquistas descubram novos alvos, e sobretudo novos métodos.»

É o «fim da História»? O só aparentemente cândido Francis Fukuyama, em 1992, considerava que sim – ainda que a sua apreciação da «sociedade democrática» em pouco ou nada coincidisse com a do pensador, etologista e antropólogo António Bracinha Vieira. Este, recusando a sociedade humana que nos rodeia, temerá que «a infâmia global encoberta sob os nevoeiros da indiferença» se prolongue para o futuro e, até, que ela venha a agravar-se e «aperfeiçoar-se», tornando-se ainda mais requintada: «No fascismo há um chefe visível, e mesmo demasiado visível, enquanto na Absurdidade o poder vem sem que se saiba de onde, e a Coisa Absurda entrega-se aos seus caprichos irreflexivos e tumultuários. Eis uma analogia com os insectos sociais: entre as térmitas, o sujeito de maior estatuto produz um odor que inibe o desenvolvimento dos outros e assegura a separação das castas; na Termiteira humana, esse odor é o fluxo do capital, que conduz o jogo e governa o Incaracterístico como déspota absoluto.»

Aos que o acusaram de «niilismo», responde António Vieira que «as mais negras perspectivas invocam quase implicitamente a procura da luz». São, porém, muito intensos e persistentes os sinais de eclipse total das estrelas, ainda que acompanhados de inconformismo ou insubmissão. Por exemplo, ao dizer-nos que «a Sociedade Absurda evoluiu como forma implacável de despotismo – porque despotismo sem saída». Ou, traduzindo Antonin Artaud, ao insinuar-nos que, «para onde quer que nos voltemos, o nosso espírito não encontra senão o vazio, quando o espaço está repleto». Ou ao imaginar «um momento de não regresso, em que a linguagem perderá a prodigiosa força que lhe cabe». Mas há que salientar, também, a seguinte veemente interrogação: «Como combater num combate sem esperança, que deverá ser meditado em solidão e ascese e travado sem companhia, e que não terá nem sol nem céu no limiar do percurso dos trabalhos guerreiros?»

O autor não se abstém de enunciar alguns dilemas que se apresentam ao homem contemporâneo, o «homem-massa» de Ortega. Quer «obrigá-lo» a escolher um dos termos de cada uma de cinco alternativas, quando adverte: «Não há oposição, antes inconciliável assimetria, entre os arpejos de Orfeu e a voz das Sereias, entre o Último Filósofo e o Incaracterístico, a natureza viva e a Idade Absurda, o olhar fulgurante de Atena e os olhos medusantes de Górgona, o riso dos primeiros e últimos deuses e o termo da História.» Resta saber quantos sabem de Orfeu, do Filósofo, de Atena, dos deuses…

Este talvez não seja um texto para apenas ler, mas um livro para habitar. Há que soletrar um a um seus aforismos, abandoná-los, regressar a eles. Para melhor nos conhecermos, para não nos distrairmos da infâmia do mundo onde vivemos e não abdicarmos do mundo onde temos o direito de viver.

António Vieira, «Ensaio sobre o Termo da História», Fim de Século, 2009, 144 páginas