O «escândalo Beauvoir»

António Rego Chaves

A história da recepção de «O Segundo Sexo», a mais polémica obra de Simone de Beauvoir (1908-1986), acaba de ser recordada numa notável colectânea de textos de múltiplas proveniências organizada e prefaciada por Ingrid Galster. Nela se observa, nomeadamente, como uma grande maioria de intelectuais conservadores franceses, tanto homens como mulheres (católicos, protestantes, comunistas), todos eles avessos a assimilar, sequer, os rudimentos da psicanálise de Freud ou desconhecedores do conteúdo do «Relatório Kinsey» sobre a sexualidade masculina, não hesitou em condenar a obra, muitas vezes sem sequer a ler, devido às suas convicções pessoais, a dissimulados preconceitos ou, até, a mesquinhas rivalidades de ordem profissional.

Tudo começou em Maio de 1949, com a publicação na revista «Les Temps Modernes», fundada quatro anos antes por Sartre, de um texto assinado por Beauvoir com o título «A Iniciação Sexual da Mulher». Tratava-se de um excerto da «escandalosa» obra que seria editada meses mais tarde e que, nas palavras da autora, deixou alguns homens – entre eles Albert Camus, ofendido na sua qualidade de assumido macho francês – «doidos de fúria». Ao ver uma mulher referir-se à «sensibilidade vaginal», ao «espasmo clitoridiano» e ao «orgasmo masculino», o vigilante católico François Mauriac escreve: «Atingimos literalmente os limites do abjecto.» E, logo no mês seguinte, no jornal «Le Figaro», desencadeia um inquérito inquisitorial e lança esta pergunta insidiosa aos seus leitores: «Pensa que o recurso sistemático, nas Letras, às forças instintivas e à demência, e a exploração do erotismo que ele favoreceu constituem um perigo para o indivíduo, para a nação, para a própria literatura, e que certos homens, certas doutrinas, têm a responsabilidade disso?»

Torna-se óbvio que Mauriac não visa apenas Beauvoir, mas também e talvez sobretudo Sartre, considerado por muitos bem-pensantes e não-pensantes um autor «pornográfico» desde a publicação de «Le Mur» e, portanto, tal como Proust ou Gide, um potencial «corruptor da juventude». Se houve quem ousasse defender a autora de «O Segundo Sexo» – refiram-se os nomes prestigiados de Maurice Nadeau, Jean-Marie Domenach, Colette Audry, Francis Jeanson, Emmanuel Mounier, Dominique Aury, Jean Paulhan, Julien Gracq –, Mauriac ultrapassou todas as fronteiras do catolicismo mais retrógrado, do mau gosto e da falta de respeito humano quando escreveu numa carta a Roger Stéphane, colaborador dos «Temps Modernes», esta frase repugnante: «Aprendi muitas coisas sobre a vagina e o clítoris da sua patroa.»

Arvorado em campeão da moralidade, Mauriac propõe nas páginas de «Le Figaro» algo como uma simbólica «excomunhão» de Freud, Gide, Sartre e Beauvoir – para já não falar de Sade, Breton, Éluard, Aragon, Genet, Boris Vian e Henry Miller. O jornal «Combat», rápido no entendimento do alcance da manobra, acusa o intelectual católico, que por todo o lado parece detectar autores «culpados de uma infinidade de homicídios espirituais», de encabeçar uma conjura contra Jean-Paul Sartre – que seria, de facto, «o inimigo público número um», «o homem a abater». São recebidas muitas centenas de respostas, entre as quais «Le Figaro» escolhe para publicação, vá-se lá saber com que critério, apenas algumas dezenas, indiciando no entanto um certo equilíbrio de opiniões favoráveis e desfavoráveis a François Mauriac e Simone de Beauvoir, mais ou menos inteligentes, mais ou menos feridas de fanatismo, mais ou menos bem fundamentadas. Ao fazer o balanço final do resultado do seu «interrogatório», Mauriac declara-se decepcionado com alguns católicos que não avalizam o seu bafiento conservadorismo, incapaz de encarar de frente o «cristianismo real» do Papa Pio XII e confundindo-o levianamente – e alguma má-fé – com um utópico «cristianismo ideal». Entre os visados encontra-se Jean-Marie Domenach, redactor-chefe da revista «Esprit», fundada em 1932 pelo personalista Emmanuel Mounier que participará na polémica alertando para que «é necessário não impor ao cristianismo os óculos da moral burguesa». Quanto aos outros depoimentos discordantes, não poderiam surpreendê-lo, pois estavam em causa temas tão polémicos na época como a liberdade da mulher, o aborto, a prostituição, a igualdade entre os sexos, o lesbianismo, o casamento e o divórcio, a frigidez, o adultério, o parto sem dor, a maternidade, a educação dos filhos – e os pontos de vista sobre estas questões na sociedade francesa saída da Segunda Guerra Mundial encontravam-se longe de tender para qualquer espécie de consenso.

Recorrendo à biologia, à psicanálise, à sociologia e ao materialismo histórico para explicar a condição feminina e as razões da desigualdade entre homens e mulheres, Simone de Beauvoir suscitaria a ira de reputados intelectuais dos dois sexos integrados no Partido Comunista Francês. Jeannette Prenant tornou-se num triste exemplo desta atitude sectária, proclamando entre múltiplas citações de Lénine na revista «La Nouvelle Critique» (dirigida pelo estalinista Jean Kanapa, um antigo aluno de Sartre), que «a verdadeira libertação da mulher não é possível senão num regime socialista» e acusando a autora de «O Segundo Sexo» de «desviar as mulheres da luta comum, obscurecendo as causas reais do seu descontentamento».

Só em 1956 o Santo Ofício decidirá pôr no Index dos livros proibidos «O Segundo Sexo» e o romance «Os Mandarins», para «defender a juventude» e mesmo «as pessoas maduras» do «veneno subtil» escondido nestas obras e da «obscenidade de muitíssimas descrições». Não se coloca hoje de parte a hipótese de o existencialista cristão Gabriel Marcel ter desempenhado um papel no caso, à semelhança do que sucedera em 1946, quando sugerira às autoridades francesas, embora sem êxito, a proibição da peça de Sartre «Mortos sem Sepultura». Fosse como fosse, já se estava, na época, felizmente, a séculos dos «saudosos tempos» das «purificadoras» fogueiras da Santa Inquisição…

Ingrid Galster, «Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir», Presses de l’Universté Paris-Sorbonne, 2004, 365 páginas