Um catolicismo integrista (Cristina Campo)

António Rego Chaves

Cristina Campo (1923-1977) nasceu em Bolonha e viveu em Florença e Roma. Dela já conhecíamos, em português, os poemas de «O Passo do Adeus» e os ensaios de «Os Imperdoáveis». Surge-nos, agora, «Sob um Falso Nome», onde aborda autores como Truman Capote, Virgínia Woolf, Jorge Luis Borges, Shakespeare, D’Anunzio, Djuna Barnes ou Simone Weil, além de desenvolver um dos seus temas religiosos preferidos, a liturgia, ou seja, «o conjunto dos actos de culto da Igreja, sobretudo daqueles que se revestem de carácter público e comunitário». A escolha da liturgia é bem sintomática das suas preocupações…mas não apenas em matéria estritamente religiosa. É que, ao longo destes textos – com as notáveis excepções de dois escritos tardios, as introduções a «Ditos e Feitos dos Padres do Deserto» e a «Relatos de um Peregrino Russo», ambas de 1973 – ressalta o esteticismo (a sobrevalorização da forma em prejuízo do conteúdo) que, aliás, a autora negava ser característico da sua obra. Mas as provas em contrário estão bem à vista nos ensaios editados pela «Assírio & Alvim».

A opção pelo liturgismo estava longe de ser inocente, dadas as alterações introduzidas pelo Vaticano II. Como «boa» integrista, Cristina Campo nunca se conformaria com a «modernice» do uso de línguas vernáculas na liturgia, e opor-se-ia, com outros intelectuais tradicionalistas, à «revolução» dos anos 1960. Salientava o poeta e sacerdote católico José Tolentino de Mendonça, em prefácio a «O Passo do Adeus»: «Nessa época, Cristina Campo tornou-se uma ‘reaccionária’ [cá por nós, omitiríamos aqui as comas], uma provocadora [aqui, sim, não as dispensaríamos]. Fazia circular notas biográficas onde se apresentava, simplesmente, como alguém que se interessa por canto gregoriano e por música bizantina. Escrevia, bramia, conspirava. Organizou, quase sozinha, uma carta-manifesto, dirigida ao Papa, a pedir que nos conventos fosse mantido o ofício divino em língua latina. Este documento é divulgado a 5 de Fevereiro de 1966 e vem assinado por Wystan Hugh Auden, Robert Bresson, Jorge Luis Borges, Giorgio De Chirico, Carl Theodor Dreyer, Julien Green, Jacques Maritain, Eugenio Montale, Salvatore Quasimodo, Evelyn Waugh, María Zambrano, entre outros.»

Registemos, também, esta anotação do escritor italiano Pietro Citati: «Ela gostava acima de tudo dos ritos e da liturgia: Deus tornado visível pelas aparências e pelo rito. Não tinha uma verdadeira paixão teológica; e não chegou senão tarde à mística. Não podia compreender o total abandono dos ritos religiosos que se produziu na Jerusalém celeste, no fim do Apocalipse. Adorava Bizâncio: o esplendor das pedras, o fulgor das vestimentas, a soberana exactidão dos gestos imutáveis, as mãos erguidas para abençoar, o odor paradisíaco do incenso. Como não nos inclinarmos perante este amor da perfeição?» (…) «Por vezes, era fanática, com fervores de convertida ou de irmã da caridade. Noutros tempos, teria pregado as cruzadas ou fundado ordens religiosas.»

Há cerca de três anos, René de Ciccatty, escritor e crítico literário francês, sublinhava: «Foi Simone Weil quem lhe ofereceu um verdadeiro modelo, reencarnação moderna e militante de tantos místicos que ela lia com paixão.» Mas tal paixão, embora se tivesse prolongado durante vários anos, eclipsou-se de forma tão radical quanto nascera. Logo em Maio de 1972, num sectário prefácio ao ensaio «À Espera de Deus», incluído nesta antologia «Sob um Falso Nome», dir-se-ia querer retractar-se do seu antigo fascínio pela mística francesa. O resultado foi, a nosso ver, mais do que desastroso. Começa por chamar ao livro, não «um grande clássico cristão», mas «um grande clássico pré-cristão». Evoca «um conhecido teólogo», segundo o qual «Simone Weil converteu muitos não católicos, e desconverteu muitos católicos». Acusa-a de não ter eliminado, «no mais profundo de si, sedimentos seculares de iluminismo e de mitos iluministas». Diz que «o parcial anticatolicismo de Simone Weil tem, frequentemente, as conotações de um anticatolicismo de cartilha» e que a filósofa se manteve «prisioneira de um caminho estranho e doloroso: por um lado, a herança incuravelmente iluminística da escola de Alain [de quem foi discípula] e os últimos vestígios de uma juventude austeramente romântica; por outro, a timidez apostólica, a caridade mais sentimental que espiritual do religioso que tentou instruí-la.» Lamenta, depois, a «triste desinformação em que foi deixada», em matéria de catolicismo, a autora de «A Gravidade e a Graça». Acrescenta que «uma simples mestra de noviças carmelitas, por exemplo, a um primeiro olhar sobre Simone Weil, ter-lhe-ia referido, muito mais do que os erros teológicos, os erros ascéticos» em que a pensadora teria incorrido. Mas o mais espantoso, se possível, vem a seguir. Ouçamos Cristina Campo, arvorada, qual seca preceptora vitoriana, em austera e autoritária mestra de moral e religião: «Simone Weil não pretende, ao entrar na Igreja [aonde, aliás, nunca entrou], ‘separar-se da massa imensa e desventurada dos incrédulos’. Jamais pretenderia, ostentando um hábito religioso, ‘separar-se do comum dos mortais’. E é evidente (…) que ninguém lhe falou nunca das Confrarias e das Obras cristãs, dedicadas, até aos inícios do século XIX, a todas as desventuras, obras e vocações humanas, em todos os estratos e por todos os meandros de uma sociedade pelos outros completamente abandonada para consagrá-las aos grandes arquétipos da amorosa convivência entre os homens. É claro que nunca leu as vidas dos Santos.» Diríamos algo muito diverso: claro, mesmo claro, é que Cristina Campo aceitava sem qualquer espírito crítico as Cruzadas, o Concílio de Trento, a Inquisição, o Índice dos livros proibidos, o Vaticano I, o «catolicismo real»...

Pena é que a grande mística cristã que foi Simone Weil não estivesse já entre nós para responder a este fossilizado integrismo à maneira reaccionária de Pio IX. Mas os seus livros por aí circulam, para quem quiser conhecê-los. Ao leitor interessado sugiro uma visita atenta a este site, onde encontrará vários textos acerca da sua vida e obra.

Cristina Campo, «Sob um Falso Nome», Assírio & Alvim, 2008, 222 páginas