Santo Anselmo («Proslogion»)

A viagem interminável

António Rego Chaves

Santo Anselmo, nascido cerca de 1033 em Aosta, no norte de Itália, foi abade do mosteiro de Bec, na Normandia, e Arcebispo de Cantuária. As suas mais célebres obras – segundo o «velho» Johannes Hirschberger, responsável por uma ainda hoje sólida «História da Filosofia» que «torturou» sucessivas gerações de estudantes – são o «Monologium» (sic), sobre a sabedoria de Deus, e o «Proslogium» (sic), sobre a existência de Deus. Diz Paul Vignaux: «O ’Monologion’ [solilóquio] e o ‘Proslogion’ [alocução] visam estabelecer por razões necessárias, e não pelo testemunho dos Livros Santos, o que um cristão crê da natureza e pessoas divinas.» Mas o seu autor tornou-se conhecido, sobretudo, pela chamada «prova ontológica» (a denominação não provém de Anselmo de Aosta, mas de Kant de Königsberg, do imenso Kant) exposta neste «Proslogion», que tantos infelizes foram forçados a saber de cor para passar nos exames.

A referida «prova ontológica» da existência de Deus não merece hoje – e talvez nunca devesse ter merecido, como a seu tempo sustentaram Tomás de Aquino, Locke ou Kant, aliás ao contrário de Descartes, Leibniz e Hegel – qualquer interesse de um ponto de vista estritamente filosófico. A razão pela qual poderá agora suscitar a nossa atenção não residirá tanto no fim visado pelo seu autor quanto no caminho que este se forçou a percorrer para levar a cabo o seu empreendimento. Aqui, o ponto de chegada visado pelo viajante conta certamente menos do que a interminável viagem a que o conduziria o seu desígnio. Deixemos então Deus, fixemo-nos em Anselmo.

Muito recentemente, em «Memória & Sabedoria» (obra publicada sob a égide do Centro de Estudos Clássicos e do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) José Mattoso, num notável ensaio que intitulou «Onde está a sabedoria medieval?», explicitava: «A grande originalidade de Anselmo consiste na sua descoberta de que a fé não tem necessariamente de ser cega. Se o for até ao ponto de atrofiar a inteligência, diminui o homem. Mas o fiel pode usar da inteligência para melhor compreender aquilo em que crê. Plenamente consciente disso mesmo, Anselmo confessa a sua ânsia de entender pela razão aquilo em que acredita, e a que adere por amor. Descreve a sua experiência interior para explicar como veio a desenvolver o seu raciocínio, e assim a tornar a sua fé mais plena e mais intensa, e, por isso, o seu amor mais fervoroso.» Fixemos duas palavras: «ânsia», «amor».

«Ânsia», ansiedade, angústia – essa vivência tão tematizada na Europa desde Kierkegaard, passando por Unamuno e Sartre; mas estamos ainda no século XI, e o teólogo – talvez fosse melhor dizer, também, o místico – interroga-se, procurando uma via de conhecimento, guiado pelo «amor», sob a influência de seu grande mestre espiritual, Santo Agostinho. Afirma: «Não quero compreender para crer, mas crer para compreender.» Ou seja, só com fé, como já tinha dito o Bispo de Hipona, se pode entender a palavra divina. Ensina Étienne Gilson, grande especialista da escolástica: «A ordem a observar na procura da verdade é a seguinte: primeiro acreditar nos mistérios da fé, antes de os discutir por meio da razão; depois esforçar-se por compreender aquilo em que se acredita.» O mundo às avessas? Talvez, mas isto passava-se em plena Idade Média, antes da descoberta da totalidade da obra de Aristóteles pelo Ocidente: Anselmo morre em 1109.

Comenta a medievalista Marie-Madeleine Davy, na «Encyclopédie des mistiques»: «Homem de unidade, deseja que a oração e a investigação intelectual sejam unificadas, tal como a acção e a contemplação. Surge no início da era medieval como uma figura autêntica e única entre os pensadores e as espiritualidades cristãos. Beneditino e ‘filósofo’, mantém, numa procura das ‘razões necessárias’, o primado da contemplação. Esta investigação das ‘razões necessárias’ estimula a turbulência que se irá acentuar até à seca escolástica da Baixa Idade Média, introduzindo o gosto pela intelectualidade entre os monges e preparando o racionalismo futuro.»

Salienta José Mattoso: Santo Anselmo «deixou um número considerável de longas orações e meditações. O poder comunicativo destes textos vem também, sem dúvida, de uma experiência pessoal em que o sofrimento e o amor se tornam a prova iniciática de que nasce a verdadeira sabedoria». Eis dois excertos de um dos mais belos poemas em prosa do «Proslogion»:

«E agora, miserável homem, deixa por um pouco as tuas preocupações, retira-te um pouco dos teus pensamentos tumultuosos. Abandona agora as pesadas preocupações, pospõe as tuas trabalhosas inquietações. Dispõe-te um pouco a Deus e repousa um pouco n’Ele. Entra no recôndito aposento da tua mente, põe de parte todas as coisas além de Deus e daquilo que te ajude a procurá-lo e, fechada a porta, procura-O.»

«Seja-me permitido enxergar a tua luz desde longe, e desde o mais baixo em que me encontro. Ensina-me a procurar-te e mostra-te a mim, que te procuro, pois não posso procurar-te a não ser que me ensines, nem posso encontrar-te a não ser que te mostres. Procure-te desejando, deseje-te procurando, encontre-te amando, ame-te encontrando.»

Seria lícito substituir neste poema o termo «Deus» por «Bem», «Belo», «Verdade», «Justiça», «Ideia» (como diria o nosso «Santo» Antero)? O encanto não se quebraria. Que se seja ou não crente, talvez pouco importe; importará, sim, que se procure – mais que se procure do que se encontre – o que estiver dentro de cada um. A tal «viagem» chame-se-lhe introspecção, ou psicanálise, ou meditação, ou oração: chame-se-lhe o que se lhe chamar, talvez não se faça mais do que tentar cumprir o imperativo de Delfos, «conhece-te a ti mesmo» – e haverá que cumpri-lo, haverá mesmo que o cumprir sem fim no «recôndito aposento» da mente de cada ser humano.

S.to Anselmo, «Proslogion», seguido do «Livro em Favor de um Insensato», de Gaunilo, e do «Livro Apologético», Porto Editora, 1996, 122 páginas