Um ideólogo do «Centrão» (Carlos Leone)

António Rego Chaves

Terá o «socialismo democrático» à portuguesa encontrado o seu ideólogo para o terceiro milénio? No primeiro dos quatro capítulos deste livro, e tomando como referência um ensaio assinado por Sottomayor Cardia em 1982 («Socialismo sem Dogma»), o autor procura, não poucas vezes em sintonia com o antigo deputado e ministro do PS, perfilar-se como seu sucessor na definição dos objectivos do partido a que ambos aderiram, embora Carlos Leone , nascido em 1973, só o tenha feito em 2002. Daí uma vantagem e um inconveniente: a vantagem é a possibilidade de «aggiornamento»; a desvantagem é que alguém surgido tão recentemente na vida pública não possui a experiência de combate político em condições adversas que Sottomayor Cardia adquiriu, desde a juventude, com honestidade intelectual, determinação e coragem exemplares, durante o regime do chamado «Estado Novo».

O autor começa por distinguir – e é bom que o faça, pois alguns persistem em querer fazer-nos acreditar num mítico «fim das ideologias» – entre Esquerda e Direita. Escreve: «Esquerda designa as forças sociais empenhadas na redução das desigualdades, umas gradualistas e democráticas (socialismo democrático ou [sic] social-democracia), outras revolucionárias e colectivistas (comunistas). Já Direita caracteriza as posições daqueles que não têm como prioridade política o combate à desigualdade, quer por motivos de conservadorismo social em geral (Direita muitas vezes de origem religiosa), quer por opção ideológica (Direita liberal meritocrática) ou por mera tecnocracia (Direita desregulamentadora, dita ‘neoliberal’).»

No terceiro capítulo, consagrado à «distopia» ou perversão da «utopia» marxista, surge a bizarra novidade introduzida por Carlos Leone no debate político à escala lusitana. Ei-la, nas suas palavras: «É perante esta distopia que apenas quer ‘ser-contra’ que os herdeiros da cultura liberal em sentido próprio da política moderna, sejam de Esquerda ou de Direita, devem agir. E se a Direita democrática tem de se bater com a Direita religiosa, também a Esquerda democrática, ou [sic] social-democrata, tem de actuar de modo consequente, se quiser continuar a cumprir a sua função de transformação social que desempenha desde o início do século XX.»

Partindo de tais premissas, a conclusão lógica parece evidente. Se Sottomayor Cardia advogou o combate ideológico contra o «socialismo realmente existente» na URSS e noutros países da Europa de Leste, Carlos Leone, afastada que foi a «ameaça» da superpotência outrora sedeada em Moscovo, escolhe como «inimigo principal», não já o «comunismo», mas a «distopia socialista», ou seja, o que habitualmente chamamos «extrema-esquerda», que considera não ter qualquer projecto político em mente e que apenas se caracterizaria pela infantil birra de estar sempre a contestar os poderes capitalistas instituídos. Ergue o látego contra tais «desmancha-prazeres» e proclama, preto no branco, amalgamando socialismo reformista com social-democracia, que o Centro «não descaracteriza a Esquerda, a reformista pelo menos, se a relação desta com ele for politicamente consciente, isto é, regida por um critério que todos possam perceber e apreciar por si. Assim sendo, lança o seu petardo ideológico, envenenado q.b.: «A coabitação com o extremismo de esquerda, ontem colectivista e hoje ‘altermundialista’, tida por menos deslegitimadora, é afinal bem mais nociva: nela o socialismo democrático perde de vista a defesa da democracia como quadro político no qual desenvolve as suas políticas de igualdade e de justiça social.»

Em tal contexto, não admira que o autor erija – aliás depois de manifestar uma irreprimida simpatia em relação a Francis Fukuyama e uma não menos irreprimida antipatia por Boaventura Sousa Santos – Michael Hardt e Antonio Negri como alvos privilegiados da sua cólera. Essa obra que os dois filósofos intitularam «Império», considerada por Étienne Balibar «uma assombrosa proeza», por Frederic Jameson «a primeira grande síntese teórica do novo milénio», por Saskia Sassen «um livro extraordinário e de enorme profundidade intelectual», por Slajov Zizek «nada menos do que uma reescrita do ‘Manifesto Comunista’ na perspectiva do nosso tempo», é reduzida por Carlos Leone ao execrado discurso do «socialismo distópico». E eis o nosso veloz ensaísta a «ultrapassar» (pela direita) Sottomayor Cardia, que infelizmente já não lhe pode responder como respondeu aos que, nos últimos anos da sua vida, apadrinharam e praticaram, sob o manto da Esquerda, uma política que nada tinha a ver com a Esquerda: «Ao contrário da tentação de acordo de socialistas com o Centro, que Cardia analisava, hoje a tentação está na aliança mais ou menos formal (e, sendo menos formal, mais arriscada se torna, por contaminação da indefinição e da irresponsabilidade) do socialismo democrático com a extrema-esquerda.» Insiste, pois: «O socialismo distópico é o maior adversário político do socialismo democrático, tal como ontem o era o chamado socialismo colectivista.»

As duas últimas frases desta obra são as mais elucidativas. Vale a pena transcrevê-las, para isolarmos o cerne da questão que o autor quer resolver: «Antes de uma escolha entre Esquerda e Direita, a opção é entre tolerância activa ou distopia. Um socialista, fiel à longa tradição liberal anterior mesmo à Revolução Francesa, saberá sempre qual é o seu dever.» Traduzamos para português de Portugal, com a preciosa ajuda do brasileiro de ascendência libanesa Antônio (sic) Houaiss, o que isto quer dizer. Primeiro, que não é essencial, para um socialista, ser de Esquerda. Segundo, que o PS pode ou deve aliar-se à Direita – mas nunca à Esquerda. Ou seja, o jovem ideólogo «socialista» não passa, afinal de contas, de um encapuzado ideólogo do «Centrão». Palavra de Houaiss: «Centrão – Posicionamento político partidário, caracterizado pela equidistância da esquerda e da direita e orientado pela solidariedade de interesses grupais, sem bases ideológicas e programáticas sólidas.» Mensagem bem recebida?

Carlos Leone, «O Socialismo Nunca Existiu?», Tinta-da-china, 2008, 142 páginas