As virtudes teologais segundo Sartre

António Rego Chaves

É hoje mal conhecida a história da recepção das primeiras obras publicadas por Jean-Paul Sartre. Àqueles que a ignoram ou a esqueceram não será despiciendo sublinhar que o chamado «papa do existencialismo» foi alvo de violentas críticas provenientes da extrema-direita (Pierre Boutang) e da extrema-esquerda (o Roger Garaudy da fase estalinista), passando por inúmeros pensadores cristãos incapazes de respeitar o seu ateísmo.

Se monsenhor Régis Jolivet teve a nobreza de o considerar «um homem de bem, um grande espírito e um admirável escritor», outros, como Gabriel Marcel, acusaram-no de «desonestidade intelectual» e de «corruptor da juventude», enquanto o futuro cardeal Jean Daniélou escrevia com todas as letras que «um homem sem Deus é algo de monstruoso, como um estropiado ou um cego.» Não menos brutal, o então abade Charles Moeller iniciava assim, em 1953, o capítulo «Jean-Paul Sartre ou a negação do sobrenatural» da sua obra em seis volumes «Literatura do século XX e Cristianismo»: «Sartre diz-se o único ateu perfeitamente lógico. Os seus escritos literários contêm uma das mais hediondas ostentações de obscenidades que me foi dado conhecer.» E, mais adiante, insurgia-se contra o «gosto pelos comportamentos sexuais contra a natureza» que atribuía ao filósofo, detectando nos seus livros «recônditas complacências com o viscoso» e «baforadas nauseabundas provindas das mais íntimas misérias do homem».

Dignas foram as reacções de um Paul Nizan, de um Albert Camus ou de um Merleau-Ponty, ainda que não isentas de públicas e por vezes muito profundas dissidências, ao passo que André Gide, Jean Cocteau ou André Malraux optaram de preferência por um prudente e ciumento silêncio acerca do homem de quem todo o mundo intelectual falava após o termo da II Guerra Mundial.

Francis Jeanson, militante anticolonialista e ensaísta, fez editar, logo em 1947 – quando Sartre já publicara textos tão importantes com «A Náusea» (1938), «O Muro» (1939), «O Ser e o Nada» (1942) ou «Porta Fechada» (1944) –, «O Problema Moral e o Pensamento de Sartre». Antecipava, assim, algumas das questões sobre as quais se debruçariam os «Cadernos para uma Moral», a obra póstuma (1983) já anunciada nas últimas linhas de «O Ser e o Nada» e cuja temática «O Existencialismo é um Humanismo» (1946) estava longe de ter abordado com o desejável rigor. Tratava-se, nomeadamente, de responder a múltiplas perguntas, as menos importantes das quais não seriam, decerto, as seguintes: «A liberdade, ao tomar-se a si mesma como fim, escapará a toda e qualquer situação? Ou, pelo contrário, permanecerá situada? Ou irá situar-se tanto mais precisamente e tanto mais individualmente quanto mais vier a projectar-se na angústia, enquanto liberdade em condição, e quanto mais vier a reivindicar em maior grau a sua responsabilidade, a título de existente pelo qual o mundo advém ao ser?»

O volume «Sartre devant Dieu» (1966) inclui, além do ensaio que dá o nome ao livro, os textos «Un quidam nommé Sartre» (1965) e «De l’aliénation morale à l’exigence éthique» (1990). Francis Jeanson, bem conhecido como autor de «Sartre par lui-même» (1955), toma em linha de conta, nos três estudos agora reeditados, não apenas a obra filosófica, mas também o teatro, os romances e essa sua lúcida e fascinante narrativa autobiográfica intitulada «As Palavras» (1964). É aqui que Sartre explica, com a maior transparência, a génese do seu ateísmo: «Fui conduzido à descrença, não pelo conflito dos dogmas, mas pela indiferença dos meus avós», fazendo notar que «a boa sociedade acreditava em Deus para não falar d’Ele». Comenta Jeanson: «Nunca se escapa à nossa infância, e a tentativa de cortar com ela, abolindo-a para sempre, é tão vã como a de a recuperar para coincidir com ela.»

Ao afastar-se da religião moribunda dos seus mais próximos familiares, o jovem Jean-Paul acabará por mergulhar num ateísmo radical muito semelhante a uma verdadeira fé, cujo centro não será o Deus da sua infância mas ele próprio, prematuro órfão de pai e assumido único responsável pela sua liberdade, «cúmulo do orgulho e cúmulo da miséria». Homem entre homens, dirá que o problema de Deus «é um problema humano que diz respeito à relação dos homens entre si, um problema total a que cada um traz uma solução com sua vida inteira, e a solução que lhe traz reflecte a atitude que escolheu perante os outros homens e perante si próprio». Deus não seria senão «a obsessão dos Outros conduzida ao absoluto». Quanto ao absoluto, é uma aposta, não o célebre «pari» de Pascal no Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, mas «a aposta humana: uma aposta no homem e de cada homem, desde logo em si próprio».

Proclamará, depois, que «o marxismo é a filosofia inultrapassável do nosso tempo». E, com o andar dos anos, será cada vez mais nítida a sua passagem de «uma prática de si, orientada para uma conversão pessoal à autenticidade», para «uma praxis colectiva visando a humanização dos homens». Escreverá: «O homem é o seu próprio fim; o homem integral é o fim do homem incompleto… A praxis nasce da necessidade do fim…» (…) «É necessário recusar radicalmente esta sociedade» e «a única tentativa que pode prosseguir o intelectual é a de tentar ganhar para esta radicalização o conjunto das massas, o povo.» Abraçará a esperança: «A esperança é a relação do homem com o seu fim, relação que existe mesmo se o fim não é atingido.» E transitará da ontologia fenomenológica para a ética: «A relação mais profunda entre os homens é o que os une para além das relações de produção. É o que faz que eles sejam uns para os outros mais do que um produtor. São homens.» (…) «Se tomo a sociedade como resultante de uma relação entre os homens mais fundamental do que a política, então considero que as pessoas deveriam ter, ou podem ter, ou têm, uma certa relação primeira que é a relação de fraternidade.» Fé nos indivíduos, esperança na sociedade, fraternidade entre pessoas orgulhosamente livres e moralmente autonómicas, eis as três virtudes teologais do humanismo sartriano.

Francis Jeanson, «Sartre devant Dieu», Éditions Cécile Defaut, 2005, 205 páginas