De Weimar a Buchenwald («Revista de Occidente»)

António Rego Chaves

Estranho destino, o da pequena cidade de Weimar: abrigou figuras como Goethe, Schiller e Nietzsche, lançou a República alemã após a Grande Guerra, albergou nos arredores um dos mais sinistros símbolos do nazismo, Buchenwald, campo dito de concentração – mas não de extermínio – onde foram torturados e assassinados 56 mil prisioneiros, entre judeus, ciganos, condenados a trabalhos forçados, opositores políticos e homossexuais.

Em 1932, no centenário da morte de Goethe, um ano antes da tomada do Poder pelos nazis – na sequência de eleições democráticas «limpas», que não se esqueça – Thomas Mann comentava: «Weimar é verdadeiramente um centro do hitlerismo. Por todo o lado se pode ver o retrato de Hitler e a restante parafernália exibida em periódicos nacionais-socialistas.»

Bernd Kauffmann acrescenta pormenores relativos à propaganda cultural nazi: «Os clássicos de Weimar [Goethe, Schiller] foram disciplina obrigatória ao serviço de Terceiro Reich, como também chegaram a fazer parte involuntária desta história epigonal de instrumentalização a obra e a pessoa de Friedrich Nietzsche, a quem Alfred Rosenberg [ideólogo anti-semita, autor de ‘O Mito do Século XX’] qualificou [aliás com a activa cumplicidade da irmã do filósofo, Elisabeth Förster-Nietzsche], juntamente com Richard Wagner, de «verdadeiro precursor do nacional-socialismo.»

Não obstante estes factos, a cidade seria uma encruzilhada da cultura europeia: «Desde a música de Bach à pintura de Lucas Cranach, até aos mais modernos desenhos da Bauhaus [Gropius, Kandinsky, Klee], muitas e variadas tradições artísticas tiveram cabimento em Weimar: a literatura, o teatro, a filosofia [Fichte, Schelling e Hegel ensinaram na Universidade de Iena] e a política europeias não teriam sido o que são sem ela.» (…) Mas «o paraíso cultural transformou-se em poucos anos num inferno real criado por pessoas civilizadas para torturar os seus semelhantes» (Moreno Claros).

Siegfried Seiger: «Quando, com a revolução de Novembro de 1918, se conseguiu erradicar da Alemanha a forma feudal de domínio e a cidade obteve o título de capital do novo estado da Turíngia, a recém-nascida república foi conhecida no mundo como ‘República de Weimar’, já que havia sido no Teatro Nacional de Weimar que em 1919 se reuniu uma Assembleia Nacional eleita democraticamente que discutiu e votou a nova constituição. No entanto, a troca do militarista e conservador ‘Espírito de Potsdam’ [prussiano] pelo ‘Espírito de Weimar’ durou apenas um breve interlúdio; a jovem democracia alemã demonstrou não estar apta para a vida e em breve terminou franqueando a passagem ao regime de Hitler.»

Acrescenta o mesmo ensaísta: «Já em 1925 os círculos conservadores da Turíngia lograram expulsar da cidade a Bauhaus, talvez o mais revolucionário movimento artístico do século XX. Weimar e a Turíngia tornaram-se tristemente famosas devido a, poucas semanas antes das cerimónias comemorativas do centenário goethiano de 1932, se terem convertido no primeiro ‘Land’ alemão que obteve mediante eleição democrática o primeiro governo nacional-socialista ‘legal’ antes de 1933.»

Ignacio Sotelo, referindo-se à Constituição de Weimar, considera que o principal mérito desta lei fundamental foi desenhar normativamente o Estado-Providência. O socialista espanhol anota que «a Constituição de Weimar representa o compromisso entre o liberalismo democrático e as duas fracções da social-democracia, a ‘maioritária’ e a independente’, numa Alemanha que se debate entre as forças revolucionárias que querem implantar os conselhos operários e as forças contra-revolucionárias». Adianta Sotelo: «Toma corpo [na Constituição de Weimar] uma noção de justiça social que, ao mesmo tempo que marca as diferenças em relação ao Estado Social [de Bismarck], traça as linhas gerais do que costumamos chamar Estado-Providência que, como é bem sabido, irradia do Reino Unido para o continente [europeu] depois da Segunda Guerra Mundial.»

As diferenças entre o Estado Social e o Estado-Providência não seriam superficiais, mas profundas: «O princípio constitutivo do Estado Social consiste em garantir ao assalariado um mínimo de segurança em caso de acidente, enfermidade, invalidez ou velhice, sem por isso modificar, nem de alguma forma questionar, as relações capitalistas de produção. Bismarck recorreu inclusive ao velho paternalismo do estado prussiano para justificar uma segurança social que tinha como objectivo principal integrar socialmente a classe trabalhadora, afastando-a da tentação revolucionária.»

Em contrapartida, a Constituição de Weimar põe em questão as raízes do sistema capitalista de produção, ao dar por adquirido que este necessita de reformas substanciais para que a dignidade humana não se torne vulnerável e consagrando o direito ao trabalho, à saúde e à habitação. Aquela noção de «dignidade» virá a desempenhar um papel crucial nas declarações internacionais dos direitos humanos e em ordenamentos constitucionais europeus, nomeadamente na Lei Fundamental da RFA (1949) e nas constituições grega (1975), portuguesa (1976) e espanhola (1978).

Só existe um enigma na passagem da culta e requintada Weimar de Goethe – com escala na aprovação da progressista Constituição de 1919 – ao campo de concentração de Buchenwald (apesar das indiscutíveis injustiças originadas pelo Tratado de Versalhes, do epidémico desemprego, que chegou a atingir 43,8 por cento da população activa em 1932, da brutal inflação): o apoio maciço dos alemães a Hitler. É bem certo que talvez ninguém, como ele, pudesse assegurar, em poucos anos, o pleno emprego aos cidadãos: conseguiu-o, de facto, mas a um preço obsceno, sem paralelo na História da Humanidade, a factura a pagar pelo «socialismo» belicista: dezenas de milhões de seres humanos, incluindo grande parte dos seus compatriotas, seriam exterminadas durante a Segunda Guerra Mundial.

Revista de Occidente, «Weimar, Encrucijada de la cultura europea», 1999, 158 páginas