«A Questão de Deus/Ensaios Filosóficos» (Coordenação de Maria Leonor L. O. Xavier)

«Inutilidade» da Filosofia

António Rego Chaves

Perguntam-nos – demasiadas vezes, convenhamos – para que «serve» a Filosofia. Cansados de ouvir a mesma «provocação» ao longo de decénios, calha respondermos: «para nada». E, se insistirem, talvez retruquemos: «E para que serve a vida, ó alminhas? E para que serve a vossa cabeça, ó ávidos de dólares?» De facto, se nos situarmos no estrito plano empresarial e do mercado de trabalho dos nossos interlocutores, só nos é lícito dizer que a Filosofia «serve», em raros casos, para gerar novos filósofos que não «servem» para nada, ou, noutros, infelizmente cada vez mais vulgares em Portugal, para dar origem a professores – desempregados – de Filosofia.

Nestes anos que para tantos são de indigência, raros serão os que se atreverão a procurar um saber que logo à partida a si mesmo garante que só sabe que nada sabe – e que alcançará «verdades» de que nunca deixará de duvidar. Não há aqui irónico jogo de palavras ou ardilosa figura de retórica: o filósofo não esquece que o matemático sabe que dois e dois são quatro – só que o seu horizonte é outro e o unanimismo pouco ou nada lhe importa; importa-lhe, sim, ao exercer a sua plena liberdade de pensar, descobrir um caminho para encontrar uma provisória «certeza», a sua certeza. E, mesmo que venha a editá-la, está ciente de que ela será sempre susceptível de gerar a dúvida. O irónico – e talvez patético – reside na circunstância de isto ser válido pelo menos para os últimos 2500 anos do pensamento ocidental, sem que se possa falar de «progresso» desde a Grécia Antiga. Talvez só, como Heidegger («Holzwege»), em «caminhos que não levam a lado nenhum».

Numa aula dada em Berlim, corria o ano lectivo de 1841-42, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) foi invulgarmente frontal para com os alunos ao sublinhar que nenhum sistema filosófico tinha logrado perdurar durante longo tempo. Declarou: «Digo que é dever do professor fazer ver também este lado da filosofia, que mais aterroriza do que atrai.» E chamou a atenção dos jovens que o escutavam para «quantos, sem qualquer vocação filosófica, consumiram a substância da sua vida num esforço estéril e vão para atingir a filosofia e aí arruinaram a sua vida íntima».

Estas considerações são pertinentes ao lermos os presentes ensaios sobre «A Questão de Deus», publicados em Dezembro do ano passado, após os dois volumes de «A Questão de Deus na História da Filosofia» (2008), obra também coordenada por Maria Leonor L. O. Xavier. É surpreendente e reconfortante verificar que continua a existir quem se atreva a escrever sobre problemas metafísicos – sobretudo quando se discute uma ideia tão «inútil» quanto a de Deus. Porque esta é, talvez, para espíritos dogmáticos, a mais contestada das problematizações, pois dir-se-ia incomodar as mais variadas (in)sensibilidades filosóficas, tanto de crentes como de descrentes.

Que haja hoje, aqui, homens e mulheres que não renunciam a erigir em tema de meditação uma questão que concentrou, durante milénios, a energia dos mais insignes pensadores de todo o mundo, é algo que não pode deixar de nos regozijar. Sobretudo se e quando estes homens e estas mulheres não se perfilam como detentores da «Verdade» («como se tivessem engolido e transportassem nas entranhas o Ser supremo e eterno», diria Espinosa): pelo contrário, alguns se terão esforçado por interrogar o passado e por se questionar a si próprios, em busca de respostas e, até, de perguntas. Estranha-se, porém, que, a par de tantos teístas, cristãos na sua maioria, não se tornem audíveis vozes deístas, agnósticas e ateias (é certo que, elas também, poderiam não evitar com frequência alguma arrogância); e que, de tantas abordagens académicas, não nasçam mais ideias pessoais.

Como ensinou Unamuno em 1905: «Há espíritos limitados que consideram ser melhor um cerdo satisfeito que um homem desgraçado, e há também os que são capazes de cantar loas àquilo que chamam santa ignorância. Mas quem tenha provado a humanidade sempre há-de preferi-la, por mais profunda que seja a sua desgraça, à fartura do cerdo. Há, pois, que desassossegar os espíritos dos que nos estão próximos, remexendo-lhes o íntimo, e cumprir a obra de misericórdia de despertar quem dorme perante a iminência do perigo ou quando se oferece aos nossos olhos um qualquer sinal de beleza. Há que desinquietar os espíritos e neles infundir anseios ambiciosos, ainda que sabendo que nunca hão-de alcançar o almejado.»

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Capítulos, títulos dos ensaios e autores: I- UMA QUESTÃO SOBRE RELIGIÃO: A morte de Deus na cultura ocidental (Carlos João Correia); A questão de Deus e a questão da história das religiões (Everaldo Cescon; Providência (Maria Leonor L. O. Xavier); A natural desire for Providence? (Walter Van Herck); A única religião da Terra e o que nos impede de a praticar (Manuel Curado). II- UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICA: A probabilidade de Deus: o argumento da afinação minuciosa (Pedro Galvão); Deus (Américo Pereira); Vida, liberdade e subjectividade religiosa: mapeando um acesso possível à questão filosófica de Deus (Luís H. Dreher); III – UMA QUESTÃO METAFÍSICA: Em louvor da inutilidade de Deus (Renato Epifânio); Absoluto, subjectividade e possibilidade (José Costa Macedo); O conceito filosófico de Deus (Mafalda Blanc); Two ways of looking at three and the triune God’s perplexing goodness (Scott Randall Paine); IV – UMA QUESTÃO TEOLÒGICA E ANTROPOLÓGICA: As religiões nos roteiros da paz. O ecumenismo (Joaquim Cerqueira Gonçalves); Deus Pai ou Deus Mãe? Um olhar feminino sobre Deus (Maria Luísa Ribeiro Ferreira); Deuses, homens e animais. Uma relação ambivalente (Cristina Beckert); A descrença divina no homem (Isabel Santiago). V – NOS LIMITES DA QUESTÃO: Prova e provação de Deus (Fernando Belo); Limites. Uma alusão (Helmut Kohlenberger; Vacuidade e Deus (Paulo Borges); A mística não fala de Deus. Visão paradoxal da experiência mística (Carlos H. do C. Silva).

«A Questão de Deus – Ensaios Filosóficos», coordenação de Maria Leonor L. O. Xavier, Zéfiro, 2010, 433 páginas