Uma «terceira via» explosiva (Emmanuel Mounier)

António Rego Chaves

O personalismo francês reivindica uma ilustre ascendência, que se pode fazer remontar a Montaigne e Descartes. Também Paul Renouvier e Paul Janet costumam ser citados como personalistas, mas, em sentido estrito, o termo é hoje reservado a Henri Bergson, René Le Senne, Gabriel Marcel, Jacques Maritain e Emmanuel Mounier.

Falecido em 1950, escassos dias antes de completar 45 anos, Mounier sofrera a influência dos pensamentos de Maine de Biran, Berdiaev, Bergson, Jaspers, Maritain, Blondel e Péguy. Ao fundar, em 1932, a prestigiada revista «Esprit» (cuja publicação seria proibida, entre 1941 e 1944, durante a ocupação nazi da França), consagrou-se à tarefa de criticar a sociedade burguesa, para abrir caminho a um regime político assente nos valores espirituais do operariado. Retomando o velho sonho de Lamennais, que pretendia conciliar cristianismo e revolução, acabaria por influenciar muitos crentes integrados na Resistência, bem como alguns círculos de jovens intelectuais católicos dos meados do século XX.

Utilizando as palavras de Mounier, «o personalismo distingue-se rigorosamente do individualismo e sublinha a inserção colectiva e cósmica da pessoa». Aliando uma sólida cultura doutrinal, bíblica e teológica à formação filosófica universitária, demarca-se da hierarquia eclesiástica católica, luta contra o que chama uma «crise total da civilização», procura escapar ao que denomina a «desordem estabelecida». Rejeitando o liberalismo, o marxismo, «as místicas fascistas», que queriam afinal os católicos da revista «Esprit»? O personalismo, claro. Um personalismo já presente em Max Scheler e que se definia a um tempo contra o individualismo e contra os regimes totalitários. «Somos contra a filosofia do eu, pela filosofia do nós», escreverá em «Revolução Personalista e Comunitária». A lição estava no ar: à «política em primeiro lugar», do agnóstico reaccionário Charles Maurras, o humanista católico Jacques Maritain respondia com o «primado do espiritual».

Emmanuel Mounier não escapou à acusação de contemporizar com a «Revolução Nacional» de Pétain (recorde-se a tão ácida quanto leviana prosa de Bernard-Henri Lévy em «L’Idéologie Française») e com o fascismo. Mas muitos equívocos se devem ao facto de o seu socialismo autogestionário, inspirado em Proudhon, ser simultaneamente hostil ao parlamentarismo e ao capitalismo. Michel Winock respondeu com uma embaraçosa pergunta a todos os verrinosos caluniadores de Mounier: «Quantos intelectuais franceses poderão gabar-se de ter sido como ele o acusador da agressão mussoliniana na Etiópia; de ter alimentado a sua revista com protestos contra a cruzada franquista; de ter passado do pacifismo à recusa de Munique; de ter reclamado uma política de “salvação pública” perante o perigo hitleriano; de ter mantido a vigilância e a intransigência contra o anti-semitismo?».

Verdade é que, como sublinhou Paul Ricoeur, Mounier teve necessidade de se posicionar, não apenas em relação ao existencialismo, mas também ao jovem Marx dos «Manuscritos de 1844» e de «A Ideologia Alemã». Tarefa nada simples para um crente que parecia não duvidar de que Pascal teria sido o maior dos antecessores do personalismo «se o pensamento jansenista o não afastasse para uma religião isolada e altiva». Aliás, a questão talvez se pudesse pôr nos seguintes termos: seria possível associar a radical subjectividade de Pascal ao materialismo histórico de Marx? A tragédia residiria, para os personalistas, na incapacidade de viver com ambos – ou sem qualquer deles. Individualismo e colectivismo numa só teoria, numa só prática? Mesmo que não fosse exequível, talvez essa síntese constituísse para muitos um fascinante imperativo categórico. Daí a utopia da «terceira via» entre capitalismo e comunismo e a força de atracção do personalismo de Emmanuel Mounier.

«A verdade de cada um só existe quando em união com todos os outros.» O personalismo não é um individualismo. «A fórmula jansenista “só eu e o meu Deus” é tão falsa para a vida religiosa como para a vida em nós de qualquer outro valor.» (…) «O personalismo cristão sublinhará contra o individualismo religioso o carácter comunitário (…) da fé e da vida cristã, reencontrando em novas perspectivas o equilíbrio da objectividade, desconfiança tanto do subjectivismo religioso como de qualquer objectividade redutora do acto livre, que está no centro de toda a trajectória religiosa.»

Uma teoria da acção não é um apêndice do personalismo, «é o seu capítulo central». «Que exigiremos da acção? Que modifique a realidade exterior, que nos forme, que nos aproxime dos homens, que enriqueça o nosso universo de valores.» O apoliticismo é, na imensa maioria dos casos, «uma deserção espiritual». Eis-nos, pois, chegados a um verdadeiro programa de democracia económica e política: «abolição da condição proletária; substituição de uma economia anárquica, fundada no lucro, por uma economia organizada em ordem às perspectivas totais das pessoas; socialização, sem estatização, dos sectores de produção que alimentam a alienação económica; desenvolvimento da vida sindical; reabilitação do trabalho; promoção, contra o compromisso paternalista, da pessoa do operário; primado do trabalho sobre o capital; abolição das classes formadas na divisão de trabalho ou de fortuna; primado da responsabilidade pessoal sobre as estruturas anónimas.» E a rematar: «o socialismo será, de acordo com a sua primitiva fórmula, obra dos próprios trabalhadores, dos movimentos operários e rurais organizados, a que se unirão as fracções lúcidas da burguesia.»

«Terceira via», esta explosiva utopia de Emmanuel Mounier? Seja, mas só porque lhe faltou, mesmo, um apelo explícito à violência revolucionária dos proletários de todo o mundo contra os seus exploradores capitalistas…

Emmanuel Mounier, «O Personalismo», Ariadne-Editora, 2004, 237 páginas