Em demanda da interioridade (Novalis)

António Rego Chaves

Escreve Miranda Justo, que traduz, apresenta e anota «A Cristandade ou a Europa» – sempre com notável mérito –, que «a Europa medieval pode ser vista por Novalis antes de mais como unidade profunda à imagem da unidade vindoura – exactamente ao contrário daquilo que durante muito tempo foi a leitura segundo a qual a unidade futura seria pensada por Novalis à imagem e semelhança da unidade católica medieval». Valha a verdade, a «unidade católica medieval», política ou religiosa, não é menos mítica do que a unidade da filosofia medieval, já que nem entre Santo Agostinho e São Tomás se logrou uma síntese aceitável – e muito menos se obteve tal resultado na relação com os «hereges», ainda que o Bispo de Hipona tenha chegado a afirmar, como sublinha o historiador Annibale Zambarbieri, que os «hereges», mesmo fora da Igreja, lhe prestaram notáveis serviços, pois obrigaram os católicos a procurar a verdade. Assim, «gnosticismo e milenarismo contribuíram para formar a ortodoxia nas origens do movimento cristão, tal como certas teorias acerca do vínculo entre a humanidade e a divindade de Cristo que, condenadas pelos antigos concílios, deram impulso à compreensão das raízes donde nasceram novas concepções doutrinais».

Nascido em 1772 e falecido em 1801, pouco antes de completar 29 anos, Novalis (pseudónimo do engenheiro de Minas e escritor alemão Friedrich von Hardenberg) foi educado por pais pertencentes a uma comunidade pietista e desde a infância teve conhecimento directo da Bíblia. Autor de «Fragmentos» (1795-1800, em parte incluídos neste volume), que considerava parcelas do grande Livro a escrever e que concebia como bíblia dos tempos futuros, bem como de «Fé e Amor» (1798, opúsculo em que revela evidentes inclinações monárquicas e místicas), o grande poeta do primeiro movimento romântico na Alemanha, que se tornaria célebre sobretudo pelos seus «Hinos à Noite» (1800), redigiu em 1799 «A Cristandade ou a Europa». A obra só em 1826 viria a ser publicada pela primeira vez, ainda que amputada, e apenas em 1880 se tornaria conhecida na íntegra, só então incluindo a controversa declaração final no mínimo incómoda para uma Igreja Católica «em ruínas» e sem Papa, após a morte de Pio VI. Em 1799 a sua passagem a letra de forma fora «vetada» (entenda-se, «desaconselhada» ao autor) por Schelling, Schlegel, Tieck, Schleiermacher e Goethe.

Sintetizando, fica claro neste pequeno texto o desejo de um «Ocidente unido, feliz, pacificado sob a égide de uma Igreja cristã renovada» (Erika Tunner). Claramente influenciado pelos «Discursos sobre a Religião» de Schleiermacher, Novalis só depois aprofundará os seus estudos sobre a Idade Média e acentuará o sonho de «regresso» (?) a essa pretensa «Idade de Ouro» da poesia, da arte e da religião, no romance (inacabado) «Heinrich von Ofterdingen». Escreverá ainda os «Cânticos Espirituais» (1799-1800), onde patenteará a sua devoção a Cristo e à Virgem, sem que se possa, no entanto, falar de conversão ao catolicismo. Mas «A Cristandade ou a Europa» manifesta bem que o seu autor, embora mais ligado à Reforma do que a Roma, não era indiferente ao culto católico. Seguindo a lição dos «Discursos», posiciona-se contra a razão setecentista e a vontade em favor da emoção e da harmonia íntima – mas, ao contrário de Schleiermacher, não renunciará a superar a antinomia entre Luzes e «Sturm und Drang», consciente e inconsciente, saber e sentir, visível e invisível, razão e mito, intuição e ciência, estética e política, medicina e metafísica, química e ética – em demanda de uma utópica mas indeclinável unidade do conhecimento.

Serão de tomar à letra estas surpreendentes afirmações de Novalis, aplicadas ao Papa no contexto da negação do geocentrismo por Copérnico e Galileu: «Com razão se opunha o douto soberano da Igreja aos insolentes desenvolvimentos das humanas aptidões conseguidos em detrimento do sentido sagrado e às descobertas inoportunas e perigosas do território do saber. Assim, impediu os pensadores temerários de publicamente afirmarem que a terra fosse um insignificante astro em deambulação, pois bem sabia que juntamente com o respeito pela sua morada, pela sua pátria terrena, os homens perderiam também o respeito pelo seu lar celestial e pelo género a que pertencem, havendo de preferir as limitações do saber à infinitude da fé e habituando-se a desprezar tudo o que é grande e digno de assombro e a considerá-lo como efeito inerte de leis naturais»? Ou será que Novalis, inconformado com os sucessivos golpes a seu ver desferidos contra a unidade entre os cristãos por Lutero, pela Revolução Francesa e pelo desenvolvimento científico, se limitava a erigir em prioridade absoluta para a «ressurreição» da Europa que a Cristandade voltasse a revelar-se «viva e actuante» e a «edificar uma Igreja visível, sem consideração das fronteiras dos países», acolhendo «todos os que têm sede de sobrenatural» e servindo de «mediadora entre o antigo e o novo mundo»? Alguns «Fragmentos» poderão ajudar-nos a responder a estas questões, nomeadamente quando o poeta se refere ao «evangelho do futuro», quando sustenta que «é entre os homens que é preciso procurar Deus» e quando sentencia que «orar é na religião o mesmo que pensar na filosofia». Ou as seguintes reflexões, que talvez devam ser lidas sem perder de vista que, para Novalis, «o pluralismo é a nossa mais íntima essência»: «É estranho que a interioridade do homem haja sido tão indigentemente considerada e tratada tão sem espírito. (…) Entendimento, fantasia – razão – estes são os indigentes madeiramentos do universo em nós. (…) A ninguém ocorreu ainda (…) pesquisar as respectivas relações de comunicação. Quem sabe que maravilhosas uniões, que maravilhosas gestações ainda nos aguardam na nossa interioridade.» (…) «Estou convencido de que verdadeiras revelações se alcançam mais por intermédio do entendimento frio, técnico, e pelo sentido moral, sereno, do que por intermédio da fantasia, que parece conduzir-nos meramente ao império dos fantasmas, essa região antípoda do verdadeiro céu.»

Novalis, «A Cristandade ou a Europa», Antígona, 2006, 95 páginas