O exílio de Descartes (Pierre Bergounioux)

António Rego Chaves

Que havia de novo a dizer sobre Descartes, «glória» da filosofia francesa? Talvez o que Pierre Bergounioux nos sugere com toda a clareza, neste seu pequeno-grande livro de apenas 57 páginas: que ele pode ter sido a única indiscutível «glória» da filosofia francesa. Na verdade, muitos consideram-no hoje «o pai da filosofia moderna» e destacam a sua grande e até radical originalidade, ainda que não poucos reconheçam que ficou a dever muito à escolástica medieval: provavelmente, todos têm uma boa parcela de razão.

É importante que seja um prestigiado intelectual francês, responsável por uma importante obra nos domínios do romance, da diarística e do ensaio, a ter usado da palavra acerca do autor do «Discurso do Método»: Pierre Bergounioux reconhece neste livro que «fazer filosofia» não é, em boa verdade, a grande vocação da França e que o modo de expressão a que ela recorre espontaneamente é a literatura. Descartes, que não se dava bem com as ideias que o seu país lhe podia transmitir e também com o seu calor, teria ido tomar o fresco para a Alemanha e para a Holanda a fim de pensar em termos estritamente racionais – e também, em 1650, para a Suécia, a pedido da rainha Cristina, mas aí morreu… de frio. No entanto, nem assim o filósofo se teria libertado do carácter um tanto ou quanto «literário» do seu pensamento, tal como ficou expresso no «Discurso de Método», nas «Regras para a Direcção do Espírito» e nas «Meditações Metafísicas».

Será difícil para um pensador francês admitir – mas Pierre Bergounioux, na verdade, nunca o oculta – que a metafísica foi, em geral, uma «coisa» de alemães. Pelo menos de alguns ilustríssimos alemães, como Leibniz, Kant, Fichte, Schelling, Hegel. Descartes pôde ser, no entanto, um inovador em matéria de teoria do conhecimento: declarou que pretendia procurar a ciência «em si próprio e no grande livro do mundo». Era uma revolução.

Fugindo do calor, pois, o pensador refugia-se em 1629 na Holanda, que considera «país mediocremente frio» e onde se alegrará por se perder na multidão e «nunca ser reconhecido». O seu desígnio era meditar. Sabe também que nos Países Baixos encontrará uma paz de espírito relativa, dada a tolerância mútua então existente entre papistas e protestantes, bem como uma reconhecida comodidade da vida material. Mas não são apenas estes motivos que o levam a afastar-se para o estrangeiro: como faz notar Pierre Bergounioux, no século XVII, em França, a escolástica continuava a dominar a Sorbonne e o «clima» não era propício a grandes voos para quem desejava reflectir em liberdade sobre o corpo ou a alma, sem ter de repetir com devoção as lições de Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino.

Descartes redige na Holanda, em latim, as «Meditações sobre a Filosofia Primeira em que se demonstra a existência de Deus e a imortalidade da alma», texto que apenas em 1641 será editado e que muitos consideram a sua obra-prima. A interrogação do pensador solitário, no seu quarto de exilado, é radical: entre o sonho e a vigília, o real e o racional, será possível traçar, com exactidão, as fronteiras? Como o Cavaleiro de Triste Figura de Cervantes, como o Hamlet de Shakespeare, Descartes é forçado a debater-se com a hipótese de estar a confundir o imaginado com o real e o real com o imaginado. Existirá, então, um «génio maligno», um deus negro que possuiria a capacidade de fazer passar a ilusão por certeza e a certeza por ilusão? Surge depois a confissão do filósofo, à beira do fim da «Primeira Meditação»: «Vejo-me constrangido a reconhecer que não existe nada, naquilo que outrora reputei como verdadeiro, de que não seja lícito duvidar, não por irreflexão ou leviandade, mas por válidas e meditadas razões.»

Na «Segunda Meditação», revela uma intensa dificuldade de superar a perplexidade: «A meditação que fiz ontem mergulhou-me em tamanhas dúvidas que não as posso esquecer mais, nem vejo como se podem resolver. Como se tivesse caído inesperadamente num redemoinho de águas profundas, estou tão perturbado que não posso pôr pé firme no fundo, nem nadar para a superfície.» Mas a conclusão, sabe-se, surge como uma espécie de «ovo de Colombo» para a História da Filosofia: quem duvida, existe. Ou seja, duvidar é pensar e só quem existe pensa. Assim sugerira já Santo Agostinho n’ «A Cidade de Deus», com o seu célebre «si fallor, sum» («se me engano, existo») e pretendia, de facto, demonstrar…

Acresce um «pormenor» não despiciendo, já amplamente comentado: Descartes julgou necessário demonstrar a existência de Deus, porque Ele e só Ele lhe poderia assegurar a realidade do universo da física, a eficácia da medicina, a imperatividade da moral. «Os deuses dos filósofos são deuses da garantia, não deuses da mensagem», como anotou Hans Blumenberg.

Façamos, no entanto, justiça a Descartes enquanto filósofo, embora sem pactuar com um arreigado chauvinismo que tende a considerá-lo um «nec plus ultra» do pensamento: como frisou Fernand Braudel na «Gramática das Civilizações», com Descartes «estamos em presença da primeira crítica sistemática e moderna do conhecimento, de uma luta heróica contra todo o embuste intelectual ou metafísico, todo o erro de ‘intuição poética’.» Daí a repetir-se, com Malebranche, que «Descartes descobriu em trinta anos mais verdades do que todos os outros filósofos juntos», não vai curta a distância.

Convirá também não esquecer, como sublinhou Gustavo de Fraga na Introdução à sua tradução das «Meditações», que o «penso, logo existo» estaria patente, transformado, na filosofia transcendental de Kant e Husserl. «Presente nos passos mais importantes da ‘Crítica da Razão Pura’, bem como na longa e repetida meditação de Husserl sobre o ponto de partida e o ponto de chegada da filosofia, que é uma meditação sobre Descartes.» Estes factos teriam bastado para assegurar a «glória» do filósofo francês.

Pierre Bergounioux, «Une chambre en Hollande», Verdier, 2009, 57 páginas