Moralistas do século XVII (Da sentença até à máxima)

António Rego Chaves

Considerava o professor da Sorbonne Léon Brunschvicg (1869-1944) que La Rochefoucauld, Pascal e La Bruyère se empenharam num mesmo inquérito acerca do homem e visavam um idêntico objectivo moral. No entanto, qual zeloso guardião do pensamento universitário francês da primeira metade do século XX, não admitia no seu reduto moralistas, ou seja, gente da laia de La Rochefoucauld e La Bruyère, «culpada» de estar tão ligada à literatura quanto à filosofia. Se abria uma excepção para Pascal era porque, em sua douta opinião, este «não é propriamente um moralista.»

Propriamente ou impropriamente, a verdade é que Pascal, ao lado de La Rochefoucauld e La Bruyère, é um dos três grandes pensadores franceses representados neste extenso e excelente «Moralistes du XVIIe siècle». Anote-se, no entanto, que o «Grand Larousse» definia assim «Moraliste» em 1960: «Filósofo que se ocupa da moral. Escritor que procura corrigir os costumes por meio de reflexões ou de quadros que põem em relevo os vícios e os ridículos: La Rochefoucauld, La Bruyère, Molière são grandes moralistas». Ensinava depois que «o primeiro dos moralistas modernos é Montaigne, cujos ‘Ensaios’ [1580-1595] inauguram um século de análise moral; cristão e clássico, quer dizer, empenhado em pintar a natureza humana, o século XVII é, com efeito, o grande século dos moralistas, tanto pela obra de La Fontaine, Molière, Boileau, Racine, como pela de Francisco de Sales, Pascal, Bossuet, Fénelon, Bourdaloue. As ‘Máximas’ de La Rochefoucauld, ‘Os Caracteres’ de La Bruyère moldam para a análise moral a forma aguda e penetrante do ‘pensamento’ [sic, entre aspas] que servirá a Vauvenargues, Chamfort, Joubert, A. France, P. Valéry.»

Deixemos o «Grand Larousse» e assentemos na seguinte ideia-chave: o moralista francês do século XVII não vem para «pregar moral», a fórmula encontra-se na época já esgotada, mas aponta e expõe aos seus coetâneos costumes, atitudes e comportamentos, convidando-os a reflectir sobre si e a sociedade. Ou se limita a iluminar-lhes as vias por que estão a seguir, ou só lhes sugere, como Pascal, que amem Deus e o próximo. Poucas vezes é normativo, didáctico. E adopta, como os «três grandes» citados, o aforismo. Aforismo que, como dirá o austríaco Karl Kraus, «não coincide nunca com a verdade, pois é, ou uma meia verdade, ou uma verdade e meia». Em suma, e segundo Jean Lafond, a especificidade do moralista francês consiste em «não se apegar à ética, que releva da filosofia propriamente dita, nem à forma prescritiva da moral, que faria dele um moralizador. O moralista clássico é o homem de uma moral essencialmente descritiva.»

Os moralistas franceses do século XVII «cortam» com o aristotelismo tomista, com a tradição escolástica, com o saber livresco. Longe deles se encontra a pretensão de escrever mais alguns edificantes tratados de moral. A sua preocupação é outra, querem dar a conhecer o homem, seja na sua vida pessoal, oculta, enquanto indivíduo solitário, seja na qualidade de membro da sociedade de que é parte activa. Sentenças e máximas entram na moda – aliás, já Montaigne recusava a eloquência, muitas vezes oca, do discurso contínuo. A sentença conserva a sua definição medieval – um «dito impessoal» – a característica impessoal que a máxima virá a perder. Salienta ainda Jean Lafond: «O carácter literário da máxima, a parte que nela é concedida aos traços onde se manifestam a personalidade do seu autor e a relação particular que ele aí estabelece com o seu leitor, diferenciam-na nitidamente da sentença. Esta diferença, [o erudito italiano] Corrado Rosso tradu-la pela oposição entre o carácter exterior e retórico da sentença e o carácter interior e socrático da máxima. Premissas distintas conduzem à mesma conclusão: a sentença, apresentando-se como asserção e resposta definitiva, absoluta, impõe-se ao leitor; a máxima faz-se aceitar, quer agradar, ironiza e, quando bem interpretada, põe em questão.»

Podemos aceitar, recusar ou inverter o conteúdo da sentença; a eficácia da máxima é decerto bem mais subtil: apela para o nosso desejo de participar na sua elaboração, seja substituindo umas palavras, seja acrescentando-lhe um pormenor – isto é, acena à nossa vaidade, transformando o leitor em co-autor. Dizia com rara elegância o crítico e gramático francês Dominique Bouhours, jesuíta e feroz adversário do jansenismo e de Pascal, em 1687: «Um dos mais seguros meios de agradar não é tanto dizer e pensar quanto fazer pensar e fazer dizer. Ao não fazer mais do que abrir o espírito do leitor, dais-lhe a possibilidade de actuar, e ele atribui o que pensa e o que produz a um efeito do seu génio e da sua aptidão, mesmo que não seja senão um seguimento da destreza do autor.» (…) «Pelo contrário, quando se quer dizer tudo, não apenas se lhe retira um prazer que o encanta e o atrai, mas faz-se nascer no seu coração uma indignação secreta, dando-lhe uma oportunidade de acreditar que se desconfia da sua capacidade.»

Neste grosso volume de 1323 páginas, não muito dispendioso (28 euros), encontrará o leitor representados, além de La Rochefoucauld, Pascal e La Bruyère, cujos textos são precedidos de amplas introduções elaboradas por especialistas de renome, como André-Alain Morello, Philippe Séllier e Patrice Soler, alguns moralistas menos conhecidos – mas não destituídos de interesse – que marcaram o século XVII francês, como Madame de Sablé, o Abade D’Ailly, Étienne- François de Vernage, Jean Domat ou Charles Dufresny. Ocupar-nos-emos em próximos artigos das «Máximas» de La Rochefoucauld («A Terra sem o Céu»), dos «Pensamentos» de Pascal («O Céu mais a Terra») e d’ «Os Caracteres» de La Bruyère («Nem a Terra, nem o Céu»), obras que alguém tão exigente e tão parco em elogios quanto Nietzsche considerou representarem a mais alta expressão da literatura.

«Moralistes du XVIIe siècle», direcção de Jean Lafond, Éditions Robert Laffont, Bouquins, 2005, 1323 páginas