Valha-nos a Senhora de Fátima!

António Rego Chaves

Que faz tanta gente aqui? Num país onde as pessoas sabem tudo o que se passa depois de verem a faca e o alguidar dos telejornais, a senhora que perdeu o filho por causa do tiroteio entre os gandulos, o pedófilo sempre à procura de meninos (ai, Dona Dolores, que pena não terem transmitido imagens boas para vermos tudo o que esse malandro fez, que eu cá gosto é de ver tudo, tudo, está-me a entender?), por que raio vem tanta gente à Feira do Livro?

A meu lado, alguém me sussurra: cuidado, olha que estas não são as mesmas pessoas que vêem o Big Brother. Aqui só está gente que não desce à TVI, à SIC, ao serviço público «bestialmente competitivo» da RTP-1. Aqui só verás a fina flor dos lisboetas.

Abro olhos e ouvidos: crianças uivam de tédio, homens e mulheres bocejam sem esconder a língua, idosos ultrapassam o presbitismo para fixar os olhos em livros «modernaços»: a telenovela de Marcelo (Proust), o policial de Francisco (Kafka), a maratona de Tiago (Joyce). Um feirante salta para a tribuna improvisada cuja base são os volumes de todas as enciclopédias transportadas para o Parque Eduardo VII e arenga às massas: «Mamai Proust, ó queridos bebés; provai Kafka, ó privilegiados trabalhadores ainda com trabalho; afiai as dentaduras e mordei o Ulisses, ó incorrigíveis camilistas! Ou então naufragai todos de vez e metei-vos no mesmo barco com O Livro do Desassossego escondido nas fraldas, misturado com as sanduíches do farnel, arrumado no caixão de bordo. Comprai, comprai, minha gente!»

Mas afinal o que importa – não será mesmo, ó meu inultrapassável judoca Mário Cesariny – se calhar «o que importa não é haver gente com fome, porque assim como assim ainda há muita gente que come», se calhar o que importa é que amanhã haja «bola, antes de haver cinema, madame blanche e parola». Não era mais ou menos assim o golpe que ensinavas para nos defendermos da temível boçalidade triunfante?

Que faz tanta gente aqui? Aí vai: está apenas a dar um passeio, a descansar do monstruoso stress provocado desde há vários dias por ver lá longe, nos antípodas, 22 homens de todo o mundo a correr atrás de uma bola, entre insultos, caneladas e cabeçadas no adversário mais a jeito, tristes destrezas e torpezas a que os euros e os dólares obrigam. Os euros e os dólares, depois do velho escudo perdido por esta tristonha pátria à mercê de fadistas e futebolistas, hoje ajoelhada em Fátima pelo seu Santo Condestável, Dom Luís Álvares de Figo. E Figo.

Publicado no «Diário de Notícias de 5.6.2002 (72.ª Feira do Livro de Lisboa)