Montaigne, cidadão do Novo Mundo

António Rego Chaves

Montaigne (1533-1592) é pouco conhecido em Portugal, onde não dispomos senão de edições indesculpavelmente mutiladas dos «Ensaios». O «Ensaio sobre a Essência do Ensaio» (1944), de Sílvio Lima, continua, não obstante, a ser uma boa introdução à sua leitura integral. O injustiçado Mestre de Coimbra celebra o mundo do «humano» descoberto dentro do próprio «eu», desvendado porque Montaigne «ensaiou as suas faculdades numa aventura inédita: a sondagem, ou verdadeira microscopia, do mundo interior». E enumera as principais características dos «Ensaios»: «o auto-exercício, a autonomia mental, a vivência experiencial, a universalidade, o juízo crítico». Conclui: «Entre os ‘Ensaios’ de Montaigne e os tubos de ensaio de Pasteur, entre a balança de Montaigne e a balança de Galileu, entre os ensaios de Montaigne e os ensaios de um Bacon, Locke, Voltaire, Diderot, Leibniz, Carlyle, Macaulay, Renan, Taine, Brunetière, Huxley, Unamuno, o crítico pode urdir um fio de ininterrupta comunicação mental. Tudo são, embora sob roupagens diversas, ensaios; tudo se resume numa análoga postura ideológica: o ensaísmo, isto é, o espírito crítico.»

Em «Montaigne ou la conscience heureuse» (2002) escreveu Marcel Conche, definindo a orientação dominante nos «Ensaios»: «O filósofo procura em vão apagar-se a si mesmo para não deixar subsistir senão o verdadeiro. Pretende falar das coisas, mas não faz mais do que falar de si mesmo. Quer fazer-nos conhecer a natureza das coisas, não nos faz conhecer senão a sua própria natureza.» Perante tal egotismo, «Le Magazine Littéraire» proporciona-nos agora uma outra visão de Montaigne, a de um Montaigne preocupado com as convulsões que dilaceram o seu país ou o Novo Mundo destroçado por portugueses, espanhóis e franceses, com as chamadas guerras religiosas entre católicos e protestantes, com os seus deveres enquanto cidadão cioso da sua liberdade e da liberdade do Outro, com a mútua tolerância, aquilo a que hoje se chama «relativismo cultural» ou «multiculturalismo», ainda que sem repudiar as perenes lições do estoicismo, do epicurismo ou do cepticismo. Atente-se nesta fórmula lapidar, tantas vezes citada: «Cada um chama barbárie ao que não faz parte dos seus hábitos; tal como em relação ao verdadeiro, parece que não temos outro critério de verdade e de razão senão o exemplo e ideias das opiniões e costumes do país onde vivemos».

Neste contexto, não surpreende que Jean Lacouture aprecie em Montaigne sobretudo os seus apelos à tolerância, a sua chamada de atenção para «o respeito devido aos selvagens» e o seu papel na denúncia do colonialismo, mais do que o exímio cultor da introspecção. O que mais lhe importa no autor dos «Ensaios», afirma, não é «o homem dos livros, do diálogo consigo próprio, é o que se dirige ao rei, que intervém na guerra entre católicos e protestantes, que quer ser mediador entre ambos».

Como salienta Frank Lestringant, «a conquista e a pilhagem da América produziram um sismo sem precedentes. Em menos de um século, um continente inteiro foi destroçado, e a sua população exterminada pelas epidemias, pelo trabalho forçado nas minas e pelas mais brutais formas de exploração: entre vinte e sessenta milhões de mortos, segundo as estimativas mais fidedignas». Em dois capítulos dos «Ensaios» («Os Canibais» e «Os Coches») Montaigne evoca a agonia e morte do Novo Mundo, responsabilizando pela catástrofe os «conquistadores» que ousaram fazer-se passar por cristãos. Acusa: «Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de pessoas passadas a fio de espada e a mais rica e mais bela parte do mundo devastada em nome do negócio das pérolas e da pimenta: que mesquinhas vitórias!» A Europa é, pois, confrontada com os seus bárbaros crimes, seja no Brasil, seja no México, seja no Peru – uma Europa incapaz de respeitar as exigências que se impõem a todos os homens de bem e, em primeiro lugar, aos chamados «cristãos» que, seguros de «verdades» teológicas e da força das suas armas, queriam conquistar a terra inteira.

A palavra liberdade – nota Géralde Nakam – é uma das mais usadas nos «Ensaios» (162 ocorrências). A palavra liberdade que se opõe à palavra servidão e que se integra numa ética de justiça, de honra, de responsabilidade. A palavra liberdade indissociável da palavra tolerância, atitude esta que deveria ter prevalecido não apenas nas relações estabelecidas com os povos de outros continentes (como os martirizados incas e astecas), mas na própria França, entre católicos e protestantes, sobretudo após a bárbara matança de São Bartolomeu, em 1572. Montaigne apresenta um modelo: o imperador romano Juliano, impropriamente dito «O Apóstata», protagonista de uma sábia política de coexistência entre as religiões, única solução para os conflitos sangrentos e absoluta necessidade para a paz e o bem de um Estado. Aconselha: «Que cada um, sem quaisquer constrangimentos ou temores, sirva a sua religião.»

Contra todos os dogmatismos e todos os fanatismos religiosos, intelectuais e morais, denuncia os vícios, violências e crueldades que se ornamentam com «o glorioso título de justiça e de devoção». A guerra dita religiosa constitui, para o autor dos «Ensaios», um sacrílego atentado contra o mistério divino. Talvez porque, para ele, só Deus se pode encontrar na posse da verdade: quanto ao homem, restar-lhe-ia, com total liberdade, procurá-la sem descanso. O dogma que leva à estagnação do pensamento é o grande inimigo da investigação, da opinião, do «ensaio» capaz de conduzir cada indivíduo, seja na Europa, seja no Novo Mundo, a encontrar uma «verdade» viva, porque sempre susceptível de revisão, correcção, renovação. Uma «verdade», não absoluta, mas relativa, porque jamais válida para todos e situada nos antípodas do proselitismo, da missionação, da conversão. Uma «verdade» que não poderá senão encaminhar-nos para esta radical e socrática interrogação última: «Que sei eu?»

Le Magazine Littéraire, «Un autre regard sur Montaigne», Maio de 2007, 98 páginas