Ascensão do «integrismo laico» (Chahdortt Djavann)

António Rego Chaves

A romancista de origem iraniana Chahdortt Djavann tornou-se conhecida sobretudo após a publicação, em 2003, de um pequeno panfleto que intitulou «Bas les voiles!» («Abaixo os Véus!»). Intervindo na polémica que agitou todo a França, insurgiu-se com veemência contra o uso do véu islâmico pelas menores, não só nas escolas como fora delas, usando uma argumentação que foi com frequência considerada mais emocional do que racional por analistas de vários quadrantes políticos.

Jacques Julliard escreveu, porém, na ocasião, no semanário «Le Nouvel Observateur», que, «de todos os livros consagrados ao véu islâmico, ou melhor, islamita, (sic) é este que esperávamos há muito tempo». Declarando-se «encantado» por a autora não ter poupado os intelectuais franceses que, «sob pretexto de respeitarem as diferenças», teriam caído na «beatice comunitarista» – a escritora referira-se, até, a um «bizarro odor a sacristia ecuménica» –, acusava-os de renunciarem a qualquer sistema coerente de valores e de, por esse facto, se tornarem agentes da penetração da intolerância no corpo social do país. Mas, a terminar, referindo-se à pretensão de proibir o uso do véu às menores também fora das escolas, ironizava: «Vejo com dificuldade os polícias franceses desempenharem nas ruas das nossas cidades o papel de talibãs às avessas»…

Decerto que, ao considerar o véu islâmico como «estigma e estrela amarela da condição feminina», Chahdortt Djavann encontrara um bom «slogan» para galvanizar numerosos apoiantes entre ateus, agnósticos e cristãos. O mesmo se pode dizer quando equiparara o uso do véu à excisão do clítoris ou quando sustentara que os pais que impõem o véu às filhas deveriam ser punidos como aqueles que as maltratam fisicamente ou psiquicamente. Mas seria esta a forma mais eficaz de chamar para a sua causa um número significativo de muçulmanos e muçulmanas residentes em França?

Chegada a Paris em 1993, a autora fora obrigada a usar o véu no Irão. Justificar-se-ia, assim, o seu incontido «grito de cólera». Mas, a alguém com a sua formação em antropologia, exigir-se-ia decerto bem mais do que um enervado testemunho pessoal e meia dúzia de frases contundentes matraqueadas em livros, entrevistas e debates para evidenciar a justeza das conclusões a que porventura chegasse após uma análise tanto quanto possível objectiva da realidade francesa. Logo no início da sua obra, declarava: «Usei dez anos o véu. Era o véu ou a morte. Sei do que falo.» Só que o país de Khomeini pouco tinha a ver com o de Chirac. Traumatizada pelo seu passado, a escritora parecia esquecer que «existe um Islão especificamente francês cujas práticas e modo de organização divergem sensivelmente dos países muçulmanos» (Fatiha Kaoues). Mais: que há hoje muitos milhares de pessoas de origem francesa convertidas à religião muçulmana. Mas o seu maior erro de avaliação residia no assumir de um maniqueísmo opondo a civilização ocidental ao mundo islâmico e em que o «mal» parecia ter sido quase sempre da responsabilidade do Alcorão. Caminhava assim ao encontro dos generalizados preconceitos anti-árabes e anti-muçulmanos que invadiram o espaço ocidental nos últimos decénios, substituindo o «papão» soviético e o «perigo amarelo» pelo espectro da «jihad» contra os autoproclamados «países democráticos».

«O que pensa Alá da Europa?» insere-se na sequência destas tomadas de posição e não poderemos dizer que traga alguma correcção fundamental ao livro que o precedeu. A mesma descabelada «islamofobia» atravessa as páginas deste segundo ensaio, sustentando a autora que «a verdadeira razão pela qual o véu é essencial para os islamitas» é que com ele «as mulheres adquirem um valor de mercadoria, tornam-se objectos de valor, objectos de troca entre os homens, entre os pais, os irmãos e os futuros maridos». (…) «Uma vez colocada no mercado, a mulher com véu não pode ser comprada senão por um muçulmano. Trata-se de um bem exclusivamente reservado aos homens muçulmanos. Uma mulher muçulmana que se casa com um não-muçulmano é passível de pena de morte.» Mais adiante reconhece que «o véu foi sempre o símbolo da inferioridade das mulheres nas três religiões monoteístas», mas acrescenta que, «com o integrismo islamita, o véu simboliza a ambição de um sistema ideológico que gostaria de se impor na Europa com as suas regras específicas».

Refugiando-se nas suas inabaláveis certezas, impermeável a todas e quaisquer dúvidas, insultando ou troçando dos que se lhe opõem, Chahdortt Djavann recusa qualquer diálogo ou compromisso sobre o véu. Estaria tudo dito, só restaria acabar com esse símbolo da multissecular humilhação das muçulmanas, como viria a fazer em França a lei de 15 de Março de 2004. A militância da autora não seria particularmente inquietante se não traduzisse o mais arrogante desprezo por todos os que, muçulmanos ou não-muçulmanos, discordam das suas opções de «integrista laica». Opor a um dogmatismo outro dogmatismo não se nos afigura um método susceptível de conduzir ninguém à tolerância, ainda que esta talvez não seja mais do que uma ingénua tentativa de compreender por que motivo discordamos uns dos outros e uma séria intenção de acabar com todas as formas de exclusão e de confronto violento. Como escreveu Tahar Bem Jelloun no admirável texto «O Racismo Explicado à Minha Filha»: «O racista não ama a liberdade. Tem medo dela. Como tem medo da diferença. A única liberdade que ama é a sua, a que lhe permite fazer seja o que for, julgar os outros e ousar desprezá-los pela única razão de que são diferentes.» Ora, o que a aguerrida escritora iraniana pretende não é apenas que mais nenhuma mulher use o véu em França e, se possível, em todo o mundo. Considera necessário que os intelectuais muçulmanos «ponham em causa a sacralidade do Alcorão» e salientem que se trata, não da palavra de Deus, mas de um livro escrito por homens e que deve ser discutido pelos homens. Enfim, «exige» deles que, a exemplo de um Voltaire, critiquem a religião que molda ou moldou os seus mais arreigados valores culturais. Neste contexto, não é fácil descortinar que razões de peso teria Chahdortt Djavann para «consentir» que milhões e milhões de muçulmanos e muçulmanas exercessem a liberdade espiritual de praticar o islamismo. Dir-se-ia que, após séculos de despóticos e cruéis integrismos religiosos, se procura agora justificar a nada remota possibilidade de assistirmos à irresistível consolidação de novos mas não menos despóticos e cruéis «integrismos laicos»…

Chahdortt Djavann, «O Que Pensa Alá da Europa?», Teorema, 2005, 74 páginas