Escrever para nunca morrer (Vila-Matas)

António Rego Chaves

Muitos são os fantasmas que povoam este livro de Enrique Vila-Matas (Barcelona, 1948), o primeiro dos quais é, sem dúvida, o de Ernest Hemingway sobraçando o seu «Paris é uma Festa». Nas ruas, nos «bistrots» ou nas águas-furtadas onde habitou durante cerca de dois anos durante a juventude e onde será surpreendido pela morte do ditador Francisco Franco, em 1975, o catalão encontra e reencontra o autor de «O Velho e o Mar» e o seu companheiro e amigo, logo rival e inimigo íntimo, Scott Fitzgerald, numa narrativa em que a autobiografia e a ficção se confundem, abrindo espaço para uma desassossegada intervenção ensaística acerca do «ofício de escrever».

A literatura será, mesmo, a principal personagem viva de «Paris Nunca se Acaba», pois quase todos os intervenientes procuram servi-la ou servir-se dela, a abençoam ou a amaldiçoam, se tornam seus heróis ou anti-heróis. De facto, ela pode perfilar-se, seja como salvação, seja como doença fatal – tal como o próprio Vila-Matas já avisara em «O Mal de Montano» (2002). Doença fatal ou salvação, essa «estranha forma de vida» revela-se susceptível de ser observada, passados que foram alguns lustros ou alguns decénios de maturidade, com serena ironia, quer dizer, «com a mais elevada forma de sinceridade», com uma «cólera suavizada», com «o pudor da humanidade» (Jules Renard) – empreendimento que o autor leva a cabo ao revisitar, sem nunca se acomodar à tirania da realidade nem renunciar à imaginação criadora, os lugares onde outrora se moveu e redigiu o «criminoso» romance «La Asesina Ilustrada» (1977) que, segundo nos confessa, constitui uma narrativa da morte do poeta que ele quis ser.

Como se sabe, Hemingway e outros escritores norte-americanos da «geração perdida» expatriados em Paris tiveram a sua santa padroeira, Gertrude Stein; o «aprendiz de amante» e «escritor principiante» Vila-Matas acolheu-se à protecção de Marguerite Duras que, diz o próprio, lhe arrendou por preço simbólico uma «chambre de bonne» em pleno Quartier Latin, na rua Saint-Benoît, onde habitou durante a estada no «umbigo do mundo» – sede de muitos dos seus dolorosos pesadelos de inquieto jovem à procura de si e do segredo que lhe permitiria vir a ser um escritor capaz não só de escrever bem como de escrever a verdade. Já saberia, então, que «exilar-se no Quartier Latin é como pertencer a um clã, integrar-se numa seita, ficar marcado por essa heráldica de álcool, de ausência e de silêncio onde gerações de escritores e poetas se foram sucedendo»? Algumas razões básicas da crónica melancolia de Vila-Matas: «a volubilidade do amor, a fragilidade do nosso corpo, a opressiva mesquinhez que domina a vida social, a trágica solidão em que no fundo todos vivemos, os reveses da amizade, a monotonia e a insensibilidade que andam associadas ao costume de viver».

De alguma forma a autora de «Moderato Cantabile» teria «dado a mão» ao jovem exilado, pelo menos fornecendo-lhe um rol de treze conselhos de índole profissional, depois de este lhe dirigir um balbuciante pedido de socorro literário. Numa folha de papel que lhe ofereceu e que «parecia uma receita médica», estava anotado «tudo» o que seria necessário tomar em linha de conta para se aventurar a escrever um romance: problemas de estrutura, unidade e harmonia, enredo e história, factor tempo, efeitos textuais, verosimilhança, técnica narrativa, personagens, diálogo, cenários, estilo, experiência, registo linguístico. Diz o autor-personagem (porque «escrever é corrigir a vida – ainda que só corrijamos uma única vírgula por dia –, é a única coisa que nos protege das feridas insensatas e golpes absurdos que nos dá a horrenda vida autêntica»; ou porque «um relato autobiográfico é uma ficção entre muitas possíveis»; ou, ainda, porque «qualquer autobiografia é ficcional e qualquer ficção é autobiográfica»; ou, finalmente, porque, como sentenciava André Gide, um artista não devia contar a sua vida tal como a tinha vivido, mas vivê-la tal como a ia contar): «Senti que de repente desabava sobre mim todo o peso do mundo, ainda hoje recordo o pânico enorme – calafrio, para ser mais exacto – que senti ao ler as instruções.» Verdade é que deixará Paris apenas com uma certeza inabalável, a de ter aprendido a… escrever à máquina.

Marguerite Duras sabia, como poucos, do que falava: «Se eu tivesse a força para não fazer nada, não faria nada. É porque não tenho a força para não fazer nada que escrevo. Não há nenhuma outra razão.» Por outras palavras: «Escrevo para não me suicidar.» Vinte anos passados, no final dos seus dias, proclamará: «Já posso dizer o que quiser, nunca saberei por que se escreve e como não se escreve. Na vida, chega um momento, e penso que é total, de que não nos podemos livrar, em que tudo assume o papel de julgamento: duvidar é escrever.» Depois «fechou-se sobre si mesma, afastou-se do mundo e deixou de escrever para sempre, deixou a sua luta corpo a corpo com a escrita, deixou de ver os seus amigos». Um estilo, a retirada em silêncio.

«O passado, dizia Proust, não só não é fugaz como não sai do sítio. Com Paris passa-se o mesmo, nunca partiu em viagem. E ainda por cima nunca se acaba.» Nunca se acabam para Vila-Matas o suicídio de Jeanne Hébuterne, no dia seguinte à morte do homem que amou, Amedeo Modigliani; as duas raças dos caçadores da palavra justa, a do nómada e «punheteiro» Rimbaud e a do sedentário e «mirone» Mallarmé; os mitos de Hemingway, de Scott e Zelda, de Henry Miller, de Samuel Beckett, de Walter Benjamin; as imagens do campanário da igreja de Saint-Germain-des-Prés, do Flore, do Deux Magots, da Brasserie Lipp, da Closerie des Lilas, do Jardim do Luxemburgo; as ressonâncias do «caso Ben Barka» e do Maio de 68. E, sobretudo, nunca se acaba «a surda tragédia juvenil de quem se despediu da poesia para cair na vulgaridade da narração», o suicídio do poeta Enrique Vila-Matas, há 30 anos, quando decidiu seguir o «criminoso conselho» que Raymond Queneau em tempos dera a Marguerite Duras: «Escreva, não faça mais nada na vida.» Uma aposta, escrever para nunca morrer.

Enrique Vila-Matas, «Paris Nunca se Acaba», Editorial Teorema, 2005, 236 páginas