Lévi-Strauss («A Antropologia Face aos Problemas do Mundo Moderno»)

Pessoas e chimpanzés

António Rego Chaves

Conta Claude Lévi-Strauss (1908-2009), nesta sua síntese de alguns dos temas mais discutidos pelos antropólogos (etnocentrismo, sexualidade, desenvolvimento, pensamento mítico, «raça», diversidade cultural) que, quando os povos do interior da Nova Guiné aprenderam com os missionários a jogar futebol, adoptaram o jogo com entusiasmo. Mas, «em vez de procurarem a vitória de uma das equipas, multiplicavam os jogos até que as vitórias e as derrotas de cada campo se equilibrassem.» Em consequência: «O jogo não acaba, como entre nós, quando há um vencedor, mas quando se asseguram de que não haverá um vencido.»

Se tal prática fosse divulgada junto dos jogadores e adeptos dos clubes europeus, talvez a maioria se risse da «ingenuidade» manifestada pelas pessoas do interior da Nova Guiné, ainda que muitos proclamem com frequência que «interessa é participar», enquanto em boa verdade pouco falta para que se matem uns aos outros durante e depois dos «encontros».

Anota a propósito o autor: «Aquilo que nos surge como um defeito e como um erro pode corresponder a uma forma original de conceber as relações dos homens entre si e com o mundo». Na verdade, está ainda por provar que o carácter competitivo de uma sociedade é uma virtude – mesmo que alguém demonstrasse que apenas a competição poderá vir a criar riqueza.

Como se tal não bastasse para entender que o nosso modelo de competição é apenas mais um entre muitos admissíveis, e não «o pior com excepção de todos os outros», sublinha Lévi-Strauss que quase todas as sociedades «primitivas» rejeitam a ideia de tomar uma decisão por maioria de votos. «Encaram a coesão social e o bom entendimento no seio do grupo como preferível a qualquer inovação. A questão litigiosa é assim retomada as vezes que for necessário até que se tome uma decisão unânime. Por vezes, combates simulados precedem as deliberações. Esvaziam-se assim velhas querelas e apenas se passa ao voto quando o grupo, refrescado e renovado, realizou no seu seio as condições de uma indispensável unanimidade.»

Dir-se-iam evidentes as conclusões a extrair desta diversidade: «As nossas sociedades são feitas para mudar, é este o princípio da sua estrutura e do seu funcionamento. As sociedades ditas ‘primitivas’ surgem-nos como tal, sobretudo, por serem concebidas pelos seus membros para durar.»

Há, porém, que ter toda a cautela com o subjectivismo dos nossos juízos: «A distinção entre história estacionária e história cumulativa (uma que acumula as descobertas e as invenções, a outra, talvez tão activa como esta, mas aonde cada inovação se dissolveria numa espécie de fluxo ondulante, que nunca se afastaria de modo durável da direcção primitiva) não resultará da perspectiva etnocêntrica em que nos colocamos sempre para avaliar uma cultura diferente? Consideraríamos assim como cumulativa toda a cultura que se desenvolvesse num sentido análogo ao nosso. Enquanto as outras culturas nos surgiriam como estacionárias, não necessariamente por o serem, mas porque a sua linha de desenvolvimento não significa nada para nós, não é mensurável nos termos do sistema de referências que usamos.»

É por respeito para os povos que estudam, considera ainda o ensaísta de «O Olhar Distanciado», que os antropólogos se inibem de formular juízos acerca do valor das culturas. «Cada cultura, dizem, é por essência incapaz de estabelecer um juízo verdadeiro sobre uma outra cultura, uma vez que uma cultura não se pode evadir de si própria e a sua apreciação se mantém por isso prisioneira de um relativismo contra o qual não tem recurso.»

No entanto, como bem sabemos, as sociedades «primitivas» não têm vivido isoladas do mundo ocidental, pelo menos desde o século XVI, facto que muito terá contribuído para que não mantivessem as suas formas de vida social originais. Tal circunstância leva muitos etnólogos a pensar que elas «são perfeitamente viáveis desde que não sejam ameaçadas do exterior».

Os colonizadores da Austrália, América do Sul, Melanésia e África não se limitaram a «civilizar» povos que viviam na abundância da caça e da pesca, da colheita e da armazenagem de produtos selvagens, ao oferecem-lhes a varíola, a rubéola, a escarlatina, a tuberculose, a malária, a gripe, a papeira, a febre-amarela, a cólera, a peste, a difteria; integraram-nos nas suas implacáveis engrenagens comerciais e industriais, transmitiram-lhes «o receio de morrer de fome e a angústia de não conseguir sobreviver num meio hostil», obrigaram-nos a trabalhar até à exaustão, quando lhes bastariam duas a quatro horas de labor diário da população activa para assegurar a subsistência de todas as famílias, incluindo crianças e velhos.

Há que não esquecer que foi esta «exploração ávida das regiões exóticas e das suas populações, entre os séculos XVI e XIX, que permitiu ao mundo ocidental o seu desenvolvimento». E neste contexto será lícito tematizar a recusa do culto da competitividade pelas populações da Nova Guiné acima referidas, tal como a sua prática do jogo pelo jogo e da busca de consensos.

Se nos perguntassem se o «mundo moderno» tem algo a aprender com esses «primitivos», decerto responderíamos pela afirmativa. A questão de fundo, com efeito, reside no desenfreado culto da competitividade pelas sociedades ocidentais e nas dramáticas consequências para indivíduos e colectividades que esse culto provoca. No espaço da nossa «civilizada» arrogância, haveria que abrir caminho à «utópica» humildade de agir, não para vencer, mas para transformar a coexistência quase autista entre os nossos contemporâneos em esforço solidário de aperfeiçoamento e fraterna convivência. Seja no futebol, seja no ensino, seja nos locais de trabalho, a (in)cultura da competitividade, do conflito e da agressão, provocando em muitos a obsessão de ganhar, de humilhar e mesmo de esmagar o potencial adversário, é bem menos praticada pelo «primitivo» da Nova Guiné do pelo «civilizado» da União Europeia e pelo seu «primo-irmão» chimpanzé…

Claude Lévi-Strauss, «A Antropologia Face aos Problemas do Mundo Moderno», Temas E Debates/Círculo de Leitores, 2012, 199 páginas