Jean Améry («Morrer a sua morte»)

António Rego Chaves

Numa das «Cartas a Lucílio», no século I, escreveu Séneca quase tudo o que depois seria publicado para justificar o suicídio em determinadas condições e circunstâncias. Outros filósofos, como Epicuro, Epicteto, Montesquieu, Voltaire, Schopenhauer ou Nietzsche – Zaratustra desprezou «os pregadores da morte lenta» e garantiu querer «morrer a sua morte» –, contribuíram para fornecer argumentos aos que não condenavam o suicídio. O romano, porém, protagonizou uma atitude que podemos classificar como quase inabalável, na medida em que dois mil anos de pensamento ocidental não lograram ainda contestar com êxito a defesa que fez do direito de cada um, se e quando possível, escolher o tempo e o modo da sua própria morte.

Séneca, que viria a suicidar-se, sustentava que «a vida não é um bem que se deve conservar a todo o custo: o que importa não é o estar vivo, mas viver uma vida digna». Opinava também que morrer mais cedo ou morrer mais tarde é questão irrelevante, sendo relevante, isso sim, saber se se morre com dignidade ou sem ela, «pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem ela». E aconselhava, lacónico: «A vida agrada-te? Então vive! Não te agrada? És livre de regressar ao lugar donde vieste!»

Se recordamos Séneca a propósito desta obra de Jean Améry (1912-1978) não é porque este lhe faz uma breve referência no «Discurso sobre a Morte Voluntária»; é porque a abordagem do tema pelo filósofo austríaco revela uma clara aceitação das ideias do estóico cordovês. Por isso estranhamos o título escolhido: «Atentar contra Si», cujo odor a catecismo se nos afigura deslocado. Em Espanha, França e Itália optou-se por «Levantar la mano sobre uno mismo», «Porter la main sur soi» e «Levare la mano su di sé», para traduzir a expressão alemã «Hand an sich legen». A «originalidade» do título português reside em rejeitar de forma implícita, na capa como no interior do livro, a opinião do autor: pois atenta-se contra a moral pública, o pudor, os direitos humanos – mas nenhum homem livre atenta contra si e é «assassino de si próprio» senão à luz do dogma que considera o suicídio um «pecado» liminarmente condenável. Este atropelo teria sido evitado se fosse recordado que «autoridade é do que é autor» (Mário Cesariny); e adoptando um título como «Levantar a Mão sobre si Próprio», «Morrer pelas suas Próprias Mãos», «Dar-se a Morte a si Próprio», «Matar-se», «Suicidar-se». «Atentar contra Si», nunca. O mesmo se diga do estafado anglicismo, que inquina o texto, «cometer suicídio»: não se «comete suicídio»; há, sim, quem cometa crimes, erros, atropelos de tradução…

Enfim, Jean Améry (pseudónimo francês escolhido por Hans Mayer, por se recusar a ser conotado com a Alemanha, mesmo no pós-guerra) e este seu notabilíssimo livro, sem dúvida um dos mais importantes consagrados ao suicídio. O filósofo, depois de barbaramente torturado pelos nazis e internado em Auschwitz, Buchenwald e Bergen-Belsen, «trará para sempre a morte dentro de si», como observou W. G. Sebald. Não se trata aqui de explicar o seu suicídio, à segunda tentativa, apenas dois anos depois de publicada esta obra, pelas torturas a que foi submetido: o autor recusaria qualquer análise psicológica ou sociológica, ele que se situava no terreno da fenomenologia de Husserl, Heidegger e Sartre e pensava que «qualquer reflexão sobre a morte voluntária não começará senão aonde termina a psicologia». Tinha para si, também, que os psicólogos e os psiquiatras (a par de instâncias ditas «cristãs», ainda que sem o aval da Bíblia, como fez notar Voltaire) constituíam um intolerável obstáculo ao «reconhecimento da liberdade da morte voluntária como um direito inalienável do homem».

Sobre suicidários e suicidas, afirma o ensaísta, não há lugar para erudições e só tem direito a tomar a palavra e pronunciar-se quem, como ele próprio, «já penetrou nas trevas». (…) «A inclinação para a morte voluntária não é uma doença de que tenha de se ser curado, como sucede com o sarampo.» Mas o indiscutível é que «cada suicidário salvo é internado numa clínica psiquiátrica». Pergunta Jean Améry: «Até que ponto o melancólico está doente? Até que ponto o depressivo está doente?» (…) «A mim parece-me, considerando tudo o que li e a minha própria experiência, que as fronteiras entre a saúde psíquica e a esfera da patologia são sempre arbitrárias e estabelecidas segundo o sistema de referências vigente em cada sociedade numa dada época. O visionário, o místico e aquele que alcança o êxtase estarão todos eles então doentes? Até que ponto o estão, aqueles que Schopenhauer chama a multidão, os muitos que, invocando o senso comum, dizem tantas inanidades, que ouvi-los é de bradar aos céus?» A realidade é que, como se sabe, a sociedade marginaliza as minorias que são ou deixaram de ser «funcionais», isto é, úteis enquanto força de trabalho.

«O mundo dum homem feliz é diferente do mundo dum homem infeliz. Com a morte o mundo não se altera, cessa.» Esta asserção de Ludwig Wittgenstein, utilizada por Jean Améry como epígrafe do «Discurso sobre a Morte Voluntária», atinge como poucas o âmago da questão da morte: o suicidário escolheu entre o mundo e nada («o para além», «o lado de lá»). Optou por um «nada», que é mesmo «nada», não por um pomposo «o Nada»: recusou continuar a viver a sua vida, quis «morrer a sua morte».

Eis as últimas palavras desta implacável meditação: «A situação não é boa para o suicidário e a do suicida também não era a melhor. Não lhes devemos negar respeito pelo seu agir, nem devemos recusar-lhes a nossa simpatia, tanto mais que não fazemos uma figura brilhante. Toda a gente vê que o nosso semblante é digno de dó. Assim, baixando a cabeça, lamentemos em silêncio e com circunspecção aquele que em liberdade nos deixou.» Poucos chegaram tão longe na dignidade com que se despediram do mundo que decidiram abandonar, obedecendo à sua vontade soberana.

Jean Améry, «Atentar contra Si – Discurso sobre a Morte Voluntária», Assírio & Alvim, 2009, 223 páginas