Igreja e Estado em Portugal no século XX (Encontros de Vila Nova de Famalicão)

António Rego Chaves

Originado pelo Colóquio dos Encontros de 2003, realizado em Vila Nova de Famalicão, este livro, consagrado a um tema muito vasto, fica longe de o abordar com o rigor e a profundidade exigíveis. Em primeiro lugar, porque alguns autores desenvolvem reflexões à margem do assunto; depois, porque, para outros, a investigação original desempenha um ínfimo papel.

Vítor Neto ocupa-se de «O Estado e a Igreja na 1.ª República», salientando que, uma vez publicada a Lei da Separação do Estado das Igrejas, de Afonso Costa, a 20 de Abril de 1911, «em consequência da actuação da hierarquia eclesiástica e do aumento das divergências entre a Igreja e o Governo, todos os prelados foram desterrados das sedes das suas dioceses. De facto, em Maio de 1912, nenhum bispo se encontrava em funções nos seus bispados. A Igreja opunha-se ideologicamente ao novo regime e, na prática, a sua atitude coincidia com a resistência monárquica liderada por Paiva Couceiro. Neste ensejo, muitos padres ultramontanos apoiaram as forças anti-republicanas e, por isso, alguns foram também desterrados.» Só a chamada «República Nova», com o golpe militar de 5 de Dezembro de 1917, liderado por Sidónio Pais, embora mantendo a neutralidade do Estado em matéria religiosa, reformou ou eliminou alguns artigos da «Lei da Separação» que tinham sido até então fonte de polémicas e confrontos.

Luís Filipe Torgal, focando a questão de Fátima, procura «compreender qual o papel efectivo desempenhado na Cova da Iria pelas autoridades eclesiásticas (nos diversos graus da sua hierarquia), pelas elites leigas militantes e pela imprensa católica. Dito de outro modo: foi Fátima que se impôs à Igreja, como defenderam explicitamente os sucessivos cronistas ‘fatimistas’, o Bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva (desde 1922) e o próprio Cardeal Patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira (…) ou, pelo contrário, foi a Igreja (e/ou certos sectores a ela ligados) que impôs Fátima, como opinaram os críticos ou detractores do santuário e dos seus milagres, e depois sugeriram alguns historiadores, os quais nunca se empenharam, porém, em esclarecer com rigor científico essas suas perspectivas»? O autor será bastante claro, desenvolvida que foi uma trabalhosa investigação acerca do tema abordado: «Estamos profundamente persuadidos de que a imprensa católica, as elites laicas militantes e a própria hierarquia da Igreja empenharam-se, desde muito cedo, em desenvolver um profícuo e concertado conjunto de acções que permitiram transformar a charneca da Cova da Iria num concorrido e poderoso santuário nacional e depois internacional de peregrinação, marcado por uma espiritualidade penitencial e sacramental.» Talvez melhor do que ninguém, Cerejeira esclareceria, na introdução a «Fátima, Altar do Mundo», os propósitos, em 1953,da sua «cruzada»: «Fátima – Altar do Mundo opõe-se a Moscovo, capital do Reino do Anti-Cristo [depois de se ter oposto ao republicanismo demoliberal, enquanto ele ameaçou os interesses da Igreja]. Fátima advertiu o mundo dos perigos da guerra, escravidão e morte que corria abandonando Deus, e prometeu-lhe a salvação, a liberdade e a paz se voltasse a Cristo – no mesmo ano que era desfraldada triunfante a bandeira da satânica revolução universal, que pretende fazer a redenção do mundo sem Cristo.»

Em «Igreja e Estado no regime de Salazar – Entre a ‘Separação’, a ‘Concordata’ e a Polémica», Luís Reis Torgal trata da reacção católica e monárquica ao estado de «separação» e de anticlericalismo, corporizada pelo «Integralismo Lusitano», pelo Centro Académico de Democracia Cristã (CADC), em que militavam Salazar e Gonçalves Cerejeira, e pelo Centro Católico Português, em representação do qual o futuro ditador seria deputado. Salazar defendia teses tomistas, nomeadamente «uma sociedade não igualitária mas hierarquizada», excluindo a origem democrática do poder. Por outro lado, limitava o papel político da vontade da maioria, reduzindo o pleno direito dos povos a escolher o modo da sua organização política. Afirmava, ainda, que o Estado não poderia contrariar «os princípios de direito natural e as leis divinas». A Concordata com a Santa Sé, em 1940, reporia todos os direitos e privilégios da Igreja, incluindo o reconhecimento da propriedade de todos os bens que antes lhe pertenciam e estavam ainda na posse do Estado, além de a isentar de impostos e contribuições. O direito ao divórcio nos casamentos católicos era negado, o ensino da religião católica voltava às escolas públicas. Enfim, a hierarquia, por vezes a braços com uma aberta contestação interna, obtinha na prática tudo o que queria do Estado, tudo menos o nome de Deus na Constituição.

Exemplar foi, neste contexto, o caso de Abel Varzim, tratado por Maria Inácia Rezola em «O Sindicalismo Católico no Estado Novo». O sacerdote seria afastado de todos os cargos que ocupava no jornal «O Trabalhador», na Liga Operária Católica e na Acção Católica Portuguesa, mas mantido por Cerejeira como «uma reserva da Igreja» – para o que desse e viesse.

Quanto à guerra colonial, estudada por Nuno Estevão, a questão, para a hierarquia católica, era delicada: agradar a gregos e troianos, ou seja, ao Estado Novo e ao Papado (Pio XII, João XXIII, Paulo VI): missão impossível e geradora de graves conflitos e tensões entre Portugal e a Santa Sé, no seio do clero e, até, entre colonialistas e anticolonialistas católicos.

Arnaldo de Pinho, comparando o Cardeal Cerejeira com D. António Ferreira Gomes, escreve: «Nas suas vidas espelhou-se e protagonizou-se a evolução doutrinal da Igreja universal. O primeiro não passando das relações Igreja/Estado, lutando pela personalidade jurídica da Igreja, contra a tradição regalista, o segundo lutando por uma Igreja livre num Estado livre.» Resta não esquecer que Gonçalves Cerejeira foi um activo cúmplice do salazarismo, ao passo que o Bispo do Porto foi uma das suas vítimas…

«A Igreja e o Estado em Portugal – Da primeira República ao limiar do Século XXI», Editora Ausência, 2004, 308 páginas