Ser ou não ser «viril» (Marguerite Yourcenar)

António Rego Chaves

Uma epígrafe de Julian Barnes introduz este ensaio do oxoniano George Rousseau: «Porque nos faz a escrita perseguir o escritor? Porque não o deixamos simplesmente em paz?» De facto, o «scholar» não deixa mesmo «em paz» Marguerite Yourcenar (1903-1987), talvez para preencher eventuais lacunas das quase 600 páginas da biografia de referência assinada por Josyane Savigneau, editada entre nós pela Difel.

Será importante conhecermos a sexualidade de um(a) autor(a)? A resposta poderá não ser a mesma em todos os casos, mas julgo que podemos entender «Alexis», «As Memórias de Adriano» ou a «Obra ao Negro» sem evocarmos a orientação sexual de Yourcenar. Isto porque o importante em todos estes textos é algo de muito mais complexo, seja a escolha entre o amor espiritual e o prazer sexual, seja a lúcida e pertinaz busca interior de um grande imperador romano de sensibilidade grega, à beira da morte natural ou do suicídio, e a sua tentativa de distinguir entre amante e amado, seja a subversão dos alquimistas medievais e o ateísmo de um intelectual do Renascimento. Podemos interessar-nos pela sexualidade destas personagens históricas ou fictícias, mas será de facto imperativo, para as compreendermos, espreitar pelo buraco da fechadura a cama da sua implacável dissecadora?

Nascida em Bruxelas de mãe belga e pai francês, educada em pessoa por este, aos 15 anos já lia em seis línguas e conhecia Eurípides, Aristófanes, Chateaubriand, Hugo, Goethe, Maeterlinck, Shakespeare, Racine, La Bruyère, Ibsen, Nietzsche, Tolstoi, Huysmans e Romain Rolland. Cedo começou a percorrer a Europa, «apaixonando-se e desapaixonando-se de homens ao mesmo tempo que seduzia mulheres» (…) «Os regressos a Paris eram marcados pela devassidão e as noitadas naquele a que ela própria chamou o seu período de libertinagem.» Entre 1931 e 1936 descobre a Grécia, onde começará a traduzir Cavafy e se apaixona pelo escritor André Fraigneau – que mantinha uma ligação muito íntima com Jean Cocteau –, «aterrorizando-o com os seus avanços de cariz sexual». Conhece, entretanto, Lucy Kyriakos, casada com um primo do editor Constantin Dimaras, mantendo com ela uma relação intensa até ao início da Segunda Guerra Mundial. Em 1937 encontra aquela que seria a sua companheira, financiadora, principal tradutora para inglês, secretária e governanta desde 1939 até 1979, a norte-americana Grace Frick. Após a morte desta, vitimada por um cancro, regressa à sua vida nómada, para «não morrer sem ter dado pelo menos a volta à sua prisão». Já perto dos 80 anos, liga-se ao jovem fotógrafo homossexual Jerry Wilson, que tinha ido entrevistá-la a Mount Desert Island, na costa norte do Maine, onde habitara com Grace Frick. O novo casal nunca mais se separará até à morte de Jerry, quatro anos depois, atingido pela sida. Sublinha o ensaísta: «A sua jactância em pavoneá-lo nas capitais europeias era incomensurável: com Grace, que uns viam como uma serviçal, outros uma lacaia ou serva, nunca tinha experimentado tal excitação.»

Gustave Flaubert disse na juventude que há alturas em que os homens desejam ser uma mulher e, mais tarde, como é bem sabido, concretizou: «Madame Bovary, sou eu.» Segundo George Rousseau, também a romancista confessaria: «Adriano, sou eu.» Na verdade, «escreveu o que em crítica contemporânea se designa por narrativas travestidas, em que o escritor assume a aparência do género contrário ou disfarça as suas personagens com características do sexo oposto.» Além disso, Yourcenar acreditaria que, «tal como ela tantas vezes se fundia com Adriano, também Flaubert retratava o seu homólogo sexual – o seu duplo – em Emma Bovary». Mas, para ela, «era virtualmente impossível ter uma mulher como personagem fulcral», pois considerava que «a vida das mulheres é muito limitada ou muito secreta.»

Feministas classificaram-na como «viril», atacando-a pela sua declarada misoginia e incitando-a em vão a assumir-se como lésbica. Um psicanalista talvez dissesse que a ficcionista «introjectava o desprezo que sentia pelas mulheres, virando-o contra si própria e assumindo uma personalidade masculina». Segundo George Rousseau, «por um lado, apoiava os direitos das mulheres (direito ao aborto, direitos das mães solteiras e direito de igualdade nos postos de trabalho) e, por outro, defendia a continuidade da privacidade individual, incluindo a sua. Nunca mudou de opinião acerca do silêncio das mulheres, especialmente o silêncio sexual.» Identificada ou não com o «poder masculino», «acreditava que o amor entre duas pessoas era independente do género, imortal e intemporal, e certamente mágico e místico. Não tinha nome nem género». (…) «A grandeza literária de Yourcenar tem como base principal, não a celebração do amor homossexual, mas a sua incursão na condição humana pelas vias intuitivas do mistério e da magia, o que ela fez como voz inteiramente original.» (…) «O certo é que continuaríamos a ter o essencial de Yourcenar se os seus heróis não fossem bissexuais ou homossexuais.» Assim sendo, porque não deixar a «virilidade» em paz, captando a chama e o gelo da sua escrita?

Foi esta mulher de mármore e granito, avessa, segundo não se cansou de repetir, a «confidências pessoais» e ao «culto da personalidade» quem declarou a Matthieu Galey («De Olhos Abertos»): «Há virtudes especificamente ‘femininas’ que as feministas parecem fazer tenção de desdenhar, o que não significa, aliás, que tenham sido sempre apanágio de todas as mulheres: a doçura, a bondade, o requinte, a delicadeza, virtudes tão importantes que um homem que não as possuísse pelo menos em pequena parte seria uma besta e não um homem. Há virtudes ditas «masculinas», o que não significa que todos os homens as possuam: a coragem, a resistência, a energia física, o autodomínio, e a mulher que não detiver uma pequena parte, pelo menos, não passa de um trapo, para não dizer um farrapo. Gostaria que estas virtudes complementares servissem igualmente o bem de todos.» Quem ousará contradizê-la?

George Rousseau, «Yourcenar», Edições Asa, 2005, 170 páginas