Harold Bloom/«O Cânone Ocidental»

Um «livro dos livros»

António Rego Chaves

Será este um «livro dos livros», autêntica «bíblia» consagrada ao que de mais importante se escreveu no Ocidente? Talvez – e será difícil apontar outro em que tão evidentemente se unam a agilidade mental, a erudição e o fulgor crítico de um historiador da literatura. Com uma reserva porventura capital, capaz de abalar os alicerces da imponente catedral laboriosamente edificada: aqui quase tudo nasce em Shakespeare, cresce com Shakespeare, desagua em Shakespeare. Constitui uma petição de princípio tomar o autor de «Hamlet», «Macbeth» e «O Rei Lear» como o «deus único» da literatura – mas esta ideia é a cada página avalizada por Harold Bloom, seu idólatra.

Vinte e cinco «anjos» fazem a sua aparição no Cânone monoteísta de Bloom, encimado, sem sombra de descrença, pelo «divino» Shakespeare: Dante, Chaucer, Cervantes, Montaigne, Molière, Milton, Samuel Johnson, Goethe, Wordsworth, Jane Austen, Walt Whitman, Emily Dickinson, Charles Dickens, George Eliot, Tolstoi, Ibsen, Freud (que deveria o essencial da psicanálise ao «deus»), Proust, Joyce, Virginia Woolf, Kafka, Borges, Neruda, Pessoa (também ele temente a Shakespeare) e Beckett.

Percorre o texto um «fortíssimo sotaque anglo-americano» (o pudico adjectivo é aplicado por Manuel Frias Martins, tradutor da obra e autor da introdução), decerto insuportável para quem não se procura ou não se reconhece na «Ilha» ou nos Estados Unidos – nomeadamente em França e na Península Ibérica. Mais: além de a maioria dos eleitos ser de língua inglesa, eles são todos «brancos mortos», como têm sibilado múltiplos detractores muito vivos, sejam eles afro-americanos, sejam brancos não fanáticos de humana brancura. Bloom responde, pouco convincente: não considera Shakespeare inglês, Cervantes espanhol ou Dante italiano, mas a todos encara como «escritores universais»; Tolstoi é mais importante que Whitman e Proust é tão importante como Joyce; este não é anglo-saxão, «escreve em inglês mas como se fosse uma língua estrangeira, celta» e refere-se a Shakespeare como «o inglês». Enfim, no que toca a Samuel Beckett, escreveu muito em francês, ao passo que Borges «escrevia em espanhol mas pensava em inglês». Contudo, por mais que reconheça o «Dom Quixote» como «o livro», no sentido fixado por Herman Melville, ao passo que Shakespeare não seria «escritor de um livro, mas de 38 obras», certo é que o anglocentrismo domina todo o «Cânone Ocidental».

Numerosas teses, no mínimo dignas de ponderação e discussão – a começar pela da «divinização» de Shakespeare – são veiculadas por este ensaio, incitando o leitor a discuti-las. Alguns exemplos: «Apraz-me concordar com o lema do Dr. Johnson [Samuel Johnson, o grande dicionarista e crítico literário inglês] de que, ‘com excepção dos idiotas, nenhum homem escreveu alguma vez a não ser por dinheiro’.» (…) «A imaginação literária está contaminada pelo ardor e pelos excessos da competição social, pois ao longo da história do Ocidente a imaginação criadora viu-se a si mesma como o mais competitivo dos modos, aparentado com o do atleta solitário que corre para a sua própria glória.» (…) «Em nome da justiça social, estamos a destruir todos os padrões intelectuais e estéticos nas Humanidades e nas Ciências Sociais.» (…) «Freud é, no essencial, Shakespeare em prosa: a visão que Freud tem da psicologia humana provém, de uma maneira não totalmente inconsciente, da sua leitura das peças. Shakespeare, muito mais do que a Bíblia, veio a constituir para Freud a sua autoridade escondida, o pai que ele se recusava admitir.»

Depois de tão claras «provocações», quem serão os declarados adversários do autor de «O Cânone Ocidental»? Prosadores feridos na sua dignidade de cidadãos altruístas, poetas solidários para com os seus confrades e os humanos de todas as etnias, psicanalistas ciosos do carácter nada literário, mas eminentemente «científico», do seu saber? Não nos parece. Segundo reitera a todo o momento Harold Bloom, os «inimigos» seriam sobretudo marxistas académicos, feministas, afrocentristas, parisienses inspirados em Michel Foucault ou Jacques Derrida, os militantes daquilo a que chama «Escola do Ressentimento». E porquê? Porque a todos eles opõe, veemente, uma sacrossanta «autonomia do estético», repudiando a concepção segundo a qual a literatura pode ser norteada por ideologias ou estar ao serviço de fins sociais, políticos ou pessoais – resta averiguar, porém, se a reivindicação da «autonomia do estético» não é, ela própria, ideológica e não está ao serviço de velhíssimos mas inconfessados fins sociais, políticos ou pessoais. Explicita, no entanto, com suficiência: «A maneira mais idiota de defender o Cânone Ocidental é insistir na ideia de que ele encarna as sete virtudes mortalmente morais que constituem a nossa pretensa ordem de valores normativos e princípios democráticos.»

Feitas as contas, por que motivo(s) lemos? A resposta de Bloom está longe de ser politicamente correcta mas atinge, julgamos, o cerne da questão: «O uso autêntico que devemos fazer de Shakespeare ou de Cervantes, de Homero ou de Dante, de Chaucer ou de Rabelais, é aquele que nos leva a expandir o eu mais interior de cada um. Ler o Cânone em profundidade não fará de alguém uma pessoa melhor ou pior, um cidadão mais útil ou mais nocivo. O diálogo que a mente mantém consigo mesma não é essencialmente uma realidade social. Tudo aquilo que o Cânone Ocidental pode trazer a alguém é a própria solidão desse alguém, aquela solidão cuja forma final é o confronto de cada um com a sua própria mortalidade.»

Como observou uma vez W. H. Auden, citado pelo autor, a recensão de livros maus faz mal ao carácter. Se a inversa também é verdadeira, ficamos seguros de que a leitura cuidadosa e crítica de «O Cânone Ocidental» só pode beneficiar-nos. Também por isso estamos gratos a Harold Bloom.

Harold Bloom, «O Cânone Ocidental», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011, 588 páginas