Morrer por uma Pátria (Espanha,1936)

António Rego Chaves

Abandonaram os países onde tinham nascido, rumaram para longe de suas casas, lutaram, muitas vezes, até à morte. Batiam-se por uma causa que consideravam justa, tudo arriscaram e não poucos tudo perderam na esperança de transformar os seus sonhos em realidade. Quando, onde, como? A partir de 1936, em Espanha, integrados nas Brigadas Internacionais defensoras dos governantes democraticamente eleitos pelos cidadãos contra os militares golpistas de Franco. Ralph Fox (Halifax, Inglaterra, 1900) era um deles, um desses heróicos «poetas das ilhas», como W. H. Auden ou Stephen Spender, ou o visionário George Orwell. Verdade é que, dos 2762 britânicos das Brigadas Internacionais, morreram 543 e apenas 456 nunca ficaram feridos.

É notório que Ernest Hemingway («Por Quem os Sinos Dobram»), André Malraux («A Esperança»), Arthur Koestler («Um Testamento Espanhol»), também por lá passaram. Mas cinco dos melhores escritores jovens das ilhas ficariam enterrados em solo ibérico: Ralph Fox, os poetas Rupert John Cornford (da «Cambridge Vermelha», para utilizar a expressão do grande historiador Eric Hobsbawm), Christopher St. John Sprigg, Charles Donnelly e Julian Bell, irmão de Quentin Bell e sobrinho de Virginia Woolf. «Já não é possível não tomar partido» – alertara, na época, um grupo de escritores, incitando os confrades a falar, escrever, agir. O conturbado Evelyn Waugh comentaria, de cernelha: «Não sou um fascista e não o serei, a não ser que essa seja a única alternativa ao marxismo. É pérfido sugerir que essa escolha esteja iminente.» Poupando as palavras, Samuel Beckett optou pela pega de caras: «Viva a República!»

O escritor, crítico literário e historiador comunista Ralph Fox morreu em combate no dia 27 de Dezembro de 1936, integrado nas forças republicanas que tentavam deter, na sangrenta batalha de Lopera, perto de Córdova, o avanço das tropas comandadas por Queipo de Llano. No Verão desse mesmo ano alistara-se em Paris nas Brigadas Internacionais e, a caminho da Frente, permaneceu por algum tempo em Lisboa, com a missão de se inteirar do auxílio prestado pela ditadura salazarista aos chamados «nacionalistas». Tratava-se, como salienta José Neves no prefácio, de «sondar os caminhos do tráfico de armas e as vias de apoio do Governo português aos fascistas espanhóis». O nada burocrático «relatório» que então elaborou, com o título «Portugal Now», constitui um perspicaz e irónico retrato económico, social e político do país que éramos, sinistramente emoldurado pelas ditaduras de Hitler e Mussolini, a que se juntaria a de Franco. Saliente-se que o autor se manifesta muito atento ao perigo real representado pelo nazi-fascismo quando escreve, evocando a vida cultural e a democracia dos primeiros decénios do século XX no Velho Continente: «Paris está condenada à destruição. Os senhores da Nova Europa decidiram que o passado é demasiado desconfortável e acreditam que se destruírem Paris irão ver-se livres de uma grande parte desse passado.» Três anos depois iniciava-se a Segunda Guerra Mundial e os alemães preparavam a sua entrada triunfal na capital francesa, perante o olhar embevecido de Franco e Salazar, agora livres dos mais próximos «vermelhos»…

Eis Portugal, tal como o escritor o observou em 1936: «Os exilados são todos espanhóis, os exportadores de vinho são ingleses, os comboios são alemães, o gás e a electricidade são franco-belgas; os eléctricos, os telefones, os marcos de correio e os capacetes dos polícias são também ingleses; por outro lado, a política do governo é ítalo-alemã.» O Estoril: «É o paraíso de um exilado. Os grandes de Espanha, os condes, marqueses e duques apaixonaram-se pelo Estoril.» Salazar: «Para mostrar que está actualizado, Portugal também tem o seu salvador da pátria. Este cavalheiro – tal como os seus colegas Franco, Mussolini e Hitler – alimenta a mesma ambição de salvar a civilização, e tem a clara convicção de que o caminho mais curto (e, consequentemente, mais misericordioso) para a salvação da civilização é a sua destruição.» (…) «Numa entrevista que deu a um jornalista português (António Ferro), sugeriu que era ‘um daqueles homens raros, com uma moral excepcional, com uma grande disciplina interior, uma vontade de ferro e uma inteligência lúcida’ que tornam justificado o uso da autoridade pessoal. Lendo nessa entrevista aquilo que Salazar pensa de si próprio, assim como as histórias que são publicadas, com sua autorização, pelo Departamento de Propaganda do Estado, fica-se inevitavelmente com a impressão de que estamos a lidar com uma espécie de Cristo jesuíta do século XX. Mas o jornalista português, um repórter experiente, acertou com grande precisão quando comparou Salazar com Dante. Um Dante com génio para as finanças, que até o jornal ‘The Times’ consegue apreciar.»

Voltando ao tema central do livro, a ajuda de Salazar a Franco durante a Guerra Civil: encontra-se hoje solidamente documentado o apoio logístico, informativo, diplomático, político e material que o «Estado Novo» proporcionou aos generais rebeldes contra os legítimos governantes espanhóis, nomeadamente facilidades para escala dos Junkers 52 cedidos pela Alemanha, passagem pelo território português, por caminho-de-ferro, de munições e armas e, sobretudo, facilidades portuárias e alfandegárias para o desembarque de material bélico. Além disso, é incontroverso que Lisboa consentiu no recrutamento de portugueses para a Legião Estrangeira espanhola e permitiu a integração de oficiais do nosso Exército em unidades regulares franquistas (César Oliveira, no «Dicionário de História do Estado Novo»). Assim sendo, compreende-se a importância das informações que o escritor veio recolher a Lisboa, a fim de as transmitir aos republicanos que procuravam resistir à investida dos militares golpistas. Cumprida a sua missão em Portugal, Ralph Fox partiria para Espanha e, tal como muitos dos seus companheiros integrados nas Brigadas Internacionais, daria a vida pela nobre e generosa utopia humanista em que acreditava, sua verdadeira Pátria.

Ralph Fox, «Portugal Now», Edições Tinta-da-China, 2006, 125 páginas