Abelardo, Heloísa e os gregorianos

António Rego Chaves

Tudo parecia desde há muito estabelecido: ele, Abelardo, sapientíssimo quarentão, dava-lhe explicações, a ela, Heloísa, menina de dezassete anos, na casa do cónego Fulberto. De súbito, a paixão: simples concupiscência do filósofo, amor, amor absoluto, o dela («O amor que é só o amor é já o inferno», diz Dante segundo Cesariny). Quem nos garante tudo isto?

Quase certo, mesmo, pelo menos tanto quanto pudemos averiguar, é o que ensina Hubert Silvestre, professor emérito da Universidade Católica de Lovaina. Deixemo-lo explicar-se: «A ‘Historia Calamitatum’ e as quatro primeiras cartas que a acompanham são obra de Jean de Meun (ou de uma personagem do seu meio que partilhava o mesmo estado de espírito), que tinha como objectivo principal estabelecer a legitimidade para o clero maior (pelo menos para o diácono) de manter uma concubina. Quanto às cartas VI, VII e VIII, que não têm, no plano psicológico, o interesse das cartas ‘pessoais’, posto que se trata essencialmente de um tratado sobre a origem das monjas e da ‘Regula’ destinada provavelmente ao Paracleto, foram, na minha opinião, redigidas pelo ‘prepositus monachorum’ preocupado, entre outras coisas, em assegurar a sua autoridade sobre a superiora do Paracleto e favorecer, durante uma eleição contestada, a candidatura de Agnès de Mécringes à frente da comunidade.»

Anotemos: a «Historia Calamitatum» (ou seja, «História das Minhas Desventuras») constitui uma pretensa «autobiografia» do grande filósofo Pedro Abelardo (1079-1142), nascido em Le Pallet, no condado de Nantes, que veria algumas das suas teses condenadas nos concílios de Soissons (1121) e de Sens (1140); tem sido muito discutida pelos especialistas a autoria das cartas acima referidas, tradicionalmente atribuídas a Heloísa e Abelardo; Jean de Meun (ou Meung) foi, nada mais, nada menos, do que o responsável, cerca de 1275, pela segunda parte do célebre «Roman de la Rose», uma das obras mais importantes da Idade Média francesa, cuja primeira parte foi escrita, entre 1255 e 1240, por Guillaume de Lorris.

Teremos, pois, de abandonar toda a esperança de aceitar como válidas as teses do grande historiador da filosofia medieval que foi Étienne Gilson, isto é, seremos forçados a renunciar a uma visão poética, «romântica», e a conformar-nos com a prosaica ideia de que algumas das sublimes frases atribuídas a Heloísa sobre a defesa do amor que é só o amor, do amor livre – e contra o matrimónio – não visavam mais do que avalizar inconfessáveis interesses terrenos da Igreja Católica? Eis a opinião, decerto amplamente fundamentada, do erudito Hubert Silvestre: «No século XI, a Igreja encontrava-se num dilema: ou autorizar a ordenação de homens casados admitindo a esses homens o uso pleno dos direitos conjugais – foi essa a solução adoptada na parte oriental da Cristandade – ou então limitar a ordenação aos celibatários e, naturalmente, sujeitá-los a uma continência absoluta: foi esta a solução preconizada na Igreja latina pelos gregorianos – assim chamados devido ao nome do seu chefe, o papa Gregório VII [1073-1085] – e sancionada no segundo concílio de Latrão em 1139. A política de Gregório VII consistiu essencialmente em aplicar aos membros do clero secular as regras estritas que, em matéria sexual, eram as dos monges.»

Explicação desta intransigente tomada de posição de quem proclamava um soberano desprezo pelos bens não-celestes («O meu Reino não é deste mundo», «Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus», etc., etc., etc.)? Ei-la, vinda da mesma fonte: «A partir do momento em que o casamento fosse proibido aos bispos e aos padres, os eventuais filhos deles seriam ilegítimos e, em consequência disso, normalmente ficariam incapacitados para fazer valer, como herdeiros, os direitos sobre os seus bens e, sobretudo, sobre o património eclesiástico.» (…) «A tese que Heloísa defende com tanta eloquência, tanta impetuosidade, tanta erudição, tanta obstinação é muito similar à de André le Chapelain, isto é, que se o casamento é proibido ao clérigo de ordens sacras, em contrapartida, o direito de manter uma concubina não lhe deveria ser recusado.» Tudo claro.

À luz dos direitos ciosamente acautelados pela Igreja na Idade Média, assumem especial significado as seguintes considerações atribuídas a Heloísa em carta a Abelardo: «Invoco a Deus como testemunha: se Augusto, senhor do mundo, me achasse digna de o honrar com a aliança do matrimónio e me assegurasse para sempre o domínio do universo, o nome de meretriz contigo parecer-me-ia mais doce e mais digno do que o de imperatriz com ele!» (…) «Enquanto gozávamos dos prazeres de um amor inquieto e, para usar um termo mais vergonhoso, mas mais expressivo, nos entregávamos à fornicação, a severidade divina perdoou-nos. Mas logo que legitimámos esses amores ilegítimos e cobrimos com a dignidade conjugal a ignomínia da fornicação, a ira do Senhor abateu pesadamente a sua mão sobre nós e o nosso leito imaculado não encontrou favor diante daquele que outrora tinha tolerado um leito manchado.» O mal não estaria, pois, na livre «fornicação» praticada mais ou menos clandestinamente pelos amantes, mas na «fornicação» levada a cabo sob a capa dos laços do matrimónio…

O filósofo lúbrico, a virgem seduzida, a gravidez, o parto, o filho chamado Astrolábio, o casamento secreto, a castração do «Aristóteles do século XII» por dois capadores de porcos, a mando do cónego Fulberto – e os interesses da Igreja Católica, os vis interesses patrimoniais da Igreja Católica, defendidos nos bastidores pelos gregorianos, vedando a Heloísa e Abelardo o casamento, mas não o chamado «pecado da fornicação». Será esta a brutal verdade, toda a brutal verdade, nada mais do que a brutal verdade?

«Historia Calamitatum», Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, 271 páginas