Táctica e estratégia de Pombal (Miguel Real)

António Rego Chaves

A tese de Miguel Real em «O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa» – que de facto abrange um domínio bem mais vasto do que o título sugere e consagra apenas uma reduzidíssima parte do texto à cultura portuguesa –, pode sintetizar-se em poucas palavras: houve dois Pombal, o que governou de 1750 a 1755 e o que, a partir de 1759, «emerge decidido a marcar a história de Portugal com o selo do vanguardismo racional, substituindo o país pelo Estado e o Estado pelo rei.» Teria sido a partir desta época que Carvalho e Melo se tornou consciente do fosso que separava Portugal dos países da Europa Central, pois, desde a Restauração, vivíamos «em estado geral de indigência», entregue que fora à Inglaterra o grosso da nossa defesa e dependendo o nosso sustento das jazidas de ouro do Brasil. Conclui o autor que «imitar a Europa passa a ser, desde então, a suprema palavra de ordem colectiva portuguesa, só invertida por idêntica obsessão vanguardista e católico-ruralista por Oliveira Salazar.

No sentido de concretizar a sua política, na opinião de Miguel Real, Pombal hipervalorizaria todos os traços da decadência nacional, postulando a existência de um absoluto vazio, «cuja culpa maior faz dramaticamente encarnar na figura teatral dos jesuítas de roupeta preta e dos seus comparsas de tragédia, os representantes da alta nobreza.» E prossegue o ensaísta: «Segundo a encenação pombalina – que, em pólo oposto do nacionalismo, não se afasta da encenação salazarista – o longo reinado de D. João V teria arrastado Portugal para a mais absoluta das indigências económicas e culturais, apenas salvo de uma explosão social pelo carregamento anual dos metais preciosos da frota do Brasil.» Incontestável é que: as elites urbanas dependiam da importação dos produtos estrangeiros; os jesuítas quase monopolizavam o ensino e impediam a divulgação de novas teorias científicas, filosóficas e jurídicas em Portugal, ao mesmo tempo que mercadejavam sem rebuço nos portos brasileiros os produtos trabalhados pelos índios; a aristocracia se perfilava perante o absolutismo de D. José como autêntica «força de bloqueio»; as feitorias inglesas de Lisboa e Porto dominavam o comércio português; a Igreja Católica dispunha de um temível poder temporal e espiritual. Perante tal conjuntura, o «primeiro» Pombal concentra-se nas questões económicas, «salva» as finanças do reino, reforça o poder estatal e cria a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, retirando de vez das mãos dos jesuítas a actividade mercantil na capitania, ao mesmo tempo que lhes proíbe a administração da justiça e o governo dos povoados índios, pondo termo às práticas vigentes no reinado de D. João V. Assim se extrema o conflito entre a Coroa e a Companhia de Jesus.

Sustenta Miguel Real que, entre 1755 e 1759, «um acontecimento natural e quatro acontecimentos sociais» provocam «uma alteração radical na postura pragmática do Marquês de Pombal»: o Terramoto de 1755, as revoltas e os protestos dos jesuítas, a tentativa de incriminação de Carvalho e Melo junto de D. José, os motins do Porto e o atentado de 1758 contra o rei. Escreve o autor: «Importante é perceber o que transformou o Marquês de Pombal diplomata, pragmático, economicista, no Marquês de Pombal autor vitorioso do amesquinhamento da grande nobreza, vanguardista da cultura e da manufactura, expulsador violento dos jesuítas e arauto radical da inovação na educação nacional.» Ora, apesar do seu visível esforço, Miguel Real não consegue esbater a «figura mítica» do herói do combate aos jesuítas retrógrados e à nobreza embrutecida que travavam o desenvolvimento de Portugal, condenando-o a um atraso de décadas em relação à Europa. De facto, o Marquês não se limitou a «cuidar dos vivos e enterrar os mortos» depois do Terramoto. Reedificou a capital do reino, provou não terem fundamento as acusações de corrupção de que fora alvo, baniu revoltosos e intriguistas jesuítas ciosos de bens terrenos, enfrentou os riquíssimos comerciantes ingleses do Porto, inconformados com a criação da Companhia das Vinhas do Alto Douro e fomentadores de revoltas populares, impôs a sua autoridade a uma alta aristocracia conspiradora, decadente e parasitária. Foi não poucas vezes implacável, inutilmente brutal, cruel, até sanguinário. Ninguém o porá em dúvida. Mas queria «nacionalizar os espíritos», tal como já «nacionalizara» a economia. Isto é, não visava reformar, mas revolucionar. Haverá notícia de revoluções sem violência e mortes?

A Congregação do Oratório e a Companhia de Jesus disputaram, sobretudo na primeira metade do século XVIII, o privilégio de dominar o ensino e as mentes dos estudantes portugueses. Pombal, assumido adversário da visão aristotélico-tomista veiculada pelos jesuítas, irá, apoiado nas ideias de «estrangeirados» como Ribeiro Sanches e Luís António Verney, ampliar e completar a secularização do pensamento iniciada no século XVII. Quanto ao século XVIII, procura Miguel Real apresentar o oratoriano Teodoro de Almeida e o jesuíta Inácio Monteiro como «inventores» da reforma do ensino, pelo que esta teria, mais tarde ou mais cedo, surgido tal qual o ministro de D. José a concebeu, mesmo sem a sua intervenção: mas será que uma andorinha faz a Primavera, isto é, que os «modernismos» daquelas duas isoladas vozes eclesiásticas seriam bem aceitos pelas hierarquias religiosas? A resposta é evidente, dado o notório conservadorismo das altas instâncias em causa. Só Pombal possuía condições políticas para criar em Portugal um ensino público liberto da bafienta pedagogia dos jesuítas e servido por professores laicos formados pelas ideias iluministas. A devota D. Maria I iniciaria, depois, a célebre «Viradeira», privilegiando de novo os eclesiásticos do «Reino Cadaveroso». Mas – reconhece enfim o autor – «é indubitável que as marcas que Pombal imprimiu às suas reformas constituíram momentos-síntese pedagógicos e sociais de aproximação a modelos europeus de que já não se podia de todo recuar e muito menos apagar». Haja Deus!

Miguel Real, «O Marquês de Pombal e a Cultura Europeia», QuidNovi, 2006, 141 páginas