Ideias para a revolução liberal

António Rego Chaves

Foi José de Arriaga, irmão de Manuel de Arriaga, primeiro presidente constitucional da I República, «acérrimo defensor da Constituição de 1820, da Revolução de Setembro de 1836 e da revolta da Patuleia de 1846» (Ruben A.). Escreveu, entre outras obras, «A Inglaterra, Portugal e as suas Colónias (1882), «História da Revolução Portuguesa de 1820» (1889), «História da Revolução de Setembro» (1892) e «Os Últimos 60 Anos da Monarquia – causas da Revolução de 5 de Outubro de 1910» (1911). O texto «A Filosofia Portuguesa – 1720-1820» é uma parte da «História da Revolução Portuguesa de 1820», com o título «Movimento Intelectual».

Como salienta no prefácio o filósofo e investigador Pinharanda Gomes, a obra em quatro volumes consagrada por José de Arriaga à viragem de 1820 «constitui um estudo sobre as bases da revolução liberal, numa visão planetária, que interroga, em plano simultâneo, os elementos sociais, a conjuntura política, o confronto dos interesses e, sobretudo, a polémica das ideias, tudo isto cifrado no entendimento de que o país estava dividido, e decadente, desde o reinado de D. Manuel I». (…) «França e Inglaterra são, para o historiador, duas matrizes, ou duas plataformas de recurso, para as tendências filosóficas e culturais portuguesas. A França é o espaço da abstracção, da fina razão, do mecanicismo cartesiano. A Inglaterra é o trilho do realismo biológico, da teoria apostada à efectividade da prática, do empirismo orgânico.» (…) «A metafísica alemã, o racionalismo francês e o realismo inglês disputaram, em múltiplas instâncias, obras e datas, a predominância, mas, no parecer de Arriaga, a linha que assinalou o ideário de 1820 foi a inglesa, com prejuízo da francesa.» Utilizando as palavras do próprio José de Arriaga, decerto mais incisivas: «Enquanto a França e a Alemanha eram levadas na corrente da metafísica, Portugal olha com reserva para esta, de que se afasta o mais possível, e sustenta com ardor a filosofia experimental, prática e positiva de Aristóteles, Bacon e Newton.»

José de Arriaga, estudando a Filosofia, a Moral, o Direito e a Economia Política dos cem anos que precedem a Revolução de 1820, confere lugar destacado, respectivamente, a Verney e Teodoro de Almeida, António Soares Barbosa, Rodrigues de Brito e Pascoal José de Melo, José da Silva Lisboa. Não pretendeu o autor apresentar estes intelectuais como «causas» dos acontecimentos históricos que ocorreriam em Portugal e que conduziriam à crise do absolutismo, à guerra civil, ao liberalismo; antes tratou de não esquecer que o pensamento iluminista desempenhou papel de relevo na agonia das estruturas ideológicas que, no século XVIII e nos inícios do século XIX, muitos consideravam corporizadas pelos jesuítas.

Escreve José de Arriaga: «Foi Luís António Verney quem verdadeiramente abriu campanha contra a filosofia jesuítico-peripatética, seguindo desassombradamente e com arrojo o caminho aberto pelo padre João de Castro [do Oratório]. Ele descarregou golpes desapiedados sobre a escola predilecta dos jesuítas, os quais só desde então é que reuniram fileiras e em coluna cerrada surtiram com ataques violentos contra aquele arrojado apóstolo das ideias futuras. O pensamento de Verney coincide em todos os pontos com o do marquês de Pombal. Aquele célebre filósofo português pretende reagir contra a tradicional política místico-religiosa, arrancando as inteligências das suas superstições e preconceitos, e chamando-as para o mundo exterior da criação, e para a vida prática experimental. Para isto ele, como o padre João de Castro, pretende sustentar a filosofia de Aristóteles, o pai da moderna escola positivista.» Anota o antipositivista Pinharanda Gomes, em clara discordância com o antijesuíta José de Arriaga: «A paternidade de Aristóteles quanto ao positivismo é, no caso, uma afirmação de Arriaga, mas ela ajuda a compreender o que significa a tese de que Aristóteles é a coluna vertebral da filosofia portuguesa: ao longo de um aristotelismo fundamental e constante dispõem-se, conforme as épocas e as escolas, as tendências aristotélicas e anti-aristotélicas. Mas Aristóteles é o ponto de referência, mesmo na reforma pombalina.» Resta acrescentar um «pequeno pormenor»: o Aristóteles ensinado pelos jesuítas pouco tinha a ver com o Aristóteles do padre João de Castro, autor do polémico estudo intitulado «Filosofia aristotélica restituída e ilustrada com experimentos…»

O indefectível republicano José de Arriaga toma partido declarado por Sebastião José de Carvalho e Melo: «Os portugueses do século XVIII e sequazes do grande marquês de Pombal desejavam evitar o negativismo das ideias francesas, e mostraram toda a predilecção pelos filósofos ingleses, mais práticos, sensatos e rectos. Ao movimento imprimido aos espíritos pelo grande estadista não convinham, nem os exageros e hipóteses gratuitas da metafísica cartesiana, nem o cepticismo e descrença da escola materialista francesa. Verney viu em Aristóteles o caminho a seguir, e em Newton, Bacon e Locke, não só os correctivos que se deviam dar às doutrinas do sábio da antiguidade, mas o verdadeiro espírito dos séculos modernos e da obra regeneradora que se ia encetar no seu país.»

Quanto ao outro filósofo destacado por José de Arriaga, o padre Teodoro de Almeida, eis como nos explica a formação da ideia de Deus: «…todas quantas formações [o homem] acha nas criaturas, ou seja pela própria consciência, ou seja pelo uso dos sentidos, vai ajuntando numa parte, e vai tirando quantas imperfeições aí acha; e tendo uma ideia toda cheia de perfeições, excluindo todas as imperfeições, tem feito ideia de Deus». Comenta o autor, à antigo republicano: «Havemos de confessar que este modo de formar a ideia de Deus não desagrada ao mesmo livre-pensador. É ela uma ideia própria do entendimento humano, e filha da indução, da abstracção e exclusão das imperfeições das coisas conhecidas. Quase que se pode dizer, como Fichte, que Deus é criação da inteligência humana.»

José de Arriaga, «A Filosofia Portuguesa – 1720-1820», Guimarães Editores, 1980, 207 páginas