Voltaire («Tratado sobre a Tolerância»)

Uma lição de cristianismo

António Rego Chaves

Será oportuno (re)ler o «Tratado sobre a Tolerância»? Se alguma dúvida tivéssemos, uma recente obra de Ratzinger/Bento XVI, «Jesus de Nazaré», não poderia senão incitar-nos a (re)pensar Voltaire. Na verdade, o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, como não se estranha entre os adversários da liberdade de investigação teológica, envia-nos ali mais uma mensagem de intolerância: nas palavras de Juan José Tamayo, o livro do Papa representa «a imposição de pensamento único sobre o pluralismo, do dogma sobre o símbolo, da ortodoxia sobre a ortopraxis e, finalmente, da Igreja sobre Jesus da Nazaré». Enfim, um «cristianismo às avessas»…

Foi também um «cristianismo às avessas» que levou Luís XIV, revogando o Édito de Nantes em 1685, a encher com protestantes as masmorras de França. É certo que, falecido o monarca em 1715 e assumida a Regência pelo Duque d’Orléans, se atenuara a brutal repressão dos «hereges», mas não é menos certo que ela estava ainda longe de ter desaparecido. Sob Luís XV, para a Igreja-instituição, a alternativa seria exterminar os calvinistas… ou convertê-los, se necessário pela força, à «única fé verdadeira». As «Guerras de Religião» do século XVI estavam bem presentes nos espíritos e a hierarquia católica não queria menos do que «cortar o mal pela raiz».

Em 1724 será restabelecida a pena capital contra os sacerdotes protestantes surpreendidos no exercício do seu ministério, os fiéis do sexo masculino correm o risco de ser condenados perpetuamente às galeras e, quanto às mulheres, podem ser lançadas na prisão para o resto da vida. Vida cuja «normalidade», sublinhe-se, pouco tinha de atraente: os nascimentos e os casamentos não eram legalmente reconhecidos, os filhos dessas «uniões de facto» seriam considerados «bastardos», com todas as consequências que tal disposição implicava, nomeadamente na transmissão da herança. Como se isso não bastasse, muitas profissões eram proibidas aos huguenotes.

Nesta conjuntura, Jean Calas, um idoso negociante de tecidos protestante, é executado em 1761 depois de ter sido considerado culpado de assassinar o próprio filho porque este pretenderia converter-se ao catolicismo. Voltaire parte do pseudofilicídio para estigmatizar as perseguições religiosas, o fanatismo, a intolerância. Em 1765 acaba por obter a reabilitação do ancião, cuja inocência fora entretanto provada, mas já este fora executado.

O «philosophe» fala em nome das Luzes. Com as maiores cautelas, é certo, mas também com autoridade e brilho, insinua a necessidade de separação entre a Igreja e o Estado, sustenta que o fanatismo é uma «doença do espírito», defende os direitos da razão. Uma razão que, liberta de crenças e preconceitos, se debruça sobre os costumes, a política, a religião. Atenção: não se trata de uma arrogante razão todo-poderosa, que pretende alcançar verdades eternas: trata-se, sim, de uma razão que tem de se contentar com a aceitação de um «Deus relojoeiro» que jamais intervém em socorro dos humanos. Razão humilde, sabedora da imensidão de tudo o que não logra encerrar em silogismos, vergar à singeleza aritmética, reduzir a evidências.

Assim concebida, a razão desconfia do «entusiasmo» – ou seja, da paixão que conduz à vontade de dominar tudo o que se lhe opõe. Seguindo as pegadas de Locke e de Newton, Voltaire sabe que o terreno privilegiado onde a razão se move é o dos fenómenos observáveis: quanto ao divino, encontrar-nos-íamos sempre no domínio das conjecturas. A tolerância impõe-se, pois: se nada se sabe com segurança acerca de Deus, as «Guerras de Religião» não têm qualquer fundamento teológico e não seria lícito a uma Igreja querer «vencer» outra pela força das armas – mas seria lícito ao Poder político limitar as exigências da Igreja Católica e garantir a liberdade de culto aos protestantes, tal como fez Henrique IV quando promulgou, em 1598, o Édito de Nantes, depois da Matança do São Bartolomeu (1572).

Há, pois, que «relativizar» os dogmas – verbo este que Bento XVI, tanto quanto sabemos, gostaria de ver banido de um território que considera seu, a Teologia – reconhecendo-se que, se foi Deus o responsável pela criação da Terra, foi decerto também Deus quem permitiu o surgimento das diversas religiões e seitas que nela se digladiam. Nas suas palavras: «Não é preciso grande arte, eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos para todos os homens como irmãos. O quê, o turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos nós todos filhos do mesmo pai, criaturas do mesmo Deus?»

Deixa, assim, de ser tolerável a intolerante sentença que diz: «Fora da Igreja não há salvação»; ou – pergunta Voltaire – «conheceremos nós todas as vias de Deus e toda a amplitude das suas misericórdias? Não nos será permitido ter esperança nele, tanto quanto ter temor por ele? Não bastará ser fiel à Igreja? Será necessário que cada particular usurpe os direitos da Divindade e decida, antes dela, a sorte eterna de todos os homens?»

Foi a intolerância que condenou Jean Calas e o trucidou na roda – mas ainda há quem não queira mudar de rumo. É certo que a Igreja Católica já não dispõe do poder de converter pela força ou de matar; mas, quando agora pretende «decretar» os limites da ortodoxia e da heterodoxia entre cristãos, como tem feito Joseph Ratzinger desde há cerca de três decénios, ao mesmo tempo que se esforçava por reduzir ao silêncio um Hans Küng ou um Karl Rahner, bem como toda a teologia da libertação, contribui para recordar intolerâncias que se desejariam há muito extintas e que levaram ao extermínio, em nome de Deus, de multidões de seres humanos. E não deixa de ser irónico que Voltaire, o «ímpio» Voltaire, o feroz inimigo dos jesuítas e o suspeito de ateísmo, possa dar, em pleno século XXI, uma lição de tolerância – e de cristianismo – a muitos «bons» católicos e ao seu Papa…

Voltaire, «Tratado sobre a Tolerância», Antígona, 2011 (2.ª edição), 225 páginas