Os onze do Bragança (Vencidos da Vida)

António Rego Chaves

Foram onze os «Vencidos da Vida»: Abílio Manuel Guerra Junqueiro, António Cândido Ribeiro da Costa, Carlos de Lima Mayer, Carlos Lobo de Ávila, o Conde de Arnoso, o Conde de Ficalho, o Conde de Sabugosa, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, José Duarte Ramalho Ortigão, José Maria Eça de Queiroz e o Marquês de Soveral. O mais velho era Ramalho Ortigão (nascido em 1836). Dizia deles a afiada língua de Fialho de Almeida: «Os vencidos da vida, quando juntos, o que pretendem é jantar; depois de jantar, o que intentam é digerir; a digestão finda, se alguma coisa ao longe miram, tanto pode ser um ideal, como um water-closet.» Há bons motivos para acreditar que o autor de «Os Gatos» falava assim porque se roía de inveja por não ter sido convidado para pertencer ao grupo. Fosse como fosse, respondeu-lhe Eça em 1889, a ele e a todos os que se mostravam inquietos com a realização das já então muito faladas jantaradas no Tavares e no Hotel Bragança: «Onze sujeitos que há mais de um ano formam um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em pequenos grupos de direita e de esquerda; sem terem durante todo este tempo nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem se haverem dotado de uma denominação oficial de ‘Reais vencidos da vida’ ou ‘vencidos da vida real ou nacional’; sem arranjarem estatutos aprovados no governo civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras ‘tão anónimas quanto dedicadas’; sem iluminarem no primeiro de Dezembro; sem serem elogiados no Diário de Notícias – estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente para o futuro, na ordem das coisas morais, se falará dos ‘onze do Bragança’ como na ordem das coisas heróicas se fala dos ‘doze de Inglaterra’.»

Compõe-se esta antologia dos seguintes capítulos: «O que deles diziam»; «Como eles se viam»; «Artigos dos Vencidos»»; «Artigos não assinados n’ O Tempo»; «Uma nação só vive porque pensa» (frase do programa da Revista de Portugal, dirigida por Eça, e que integrava dez dos onze Vencidos da Vida na sua lista de colaboradores efectivos); «Sobre o vencidismo» (texto do poeta «neolusitanista» Manuel da Silva Gaio, filho do autor do célebre romance histórico «Mário», António da Silva Gaio).

Digamo-lo desde já: falta neste livro algo de essencial. Em primeiro lugar, os textos dos Vencidos da Vida publicados a partir de 1890, que não é uma data qualquer – mas a do Ultimato inglês de 11 de Janeiro, desencadeador de uma crise nacional que, como bem recorda Joel Serrão, Basílio Teles considerou ter sido «o acontecimento mais considerável que, desde as invasões napoleónicas, abalou a sociedade portuguesa», que Antero de Quental sentiu como «um momento de humilhação», que tanto indignou o Guerra Junqueiro de «Finis Patriae» e que até o fleumático Eça de Queiroz classificou como «incontestavelmente a mais severa, talvez a mais decisiva» que a sua geração afrontou. Pois bem, nada disto consta desta antologia, um tanto apressada, que se detém subitamente em 1889. Mas falta mais: falta uma introdução capaz de fornecer ao leitor desprevenido o contexto político em que surgiram os Vencidos da Vida.

Ora, que contexto foi esse? A iniciativa de promover um encontro periódico de intelectuais interessados em discutir literatura, arte ou outros assuntos da vida cultural não era decerto totalmente apolítica. Oliveira Martins (que «baptizou» a tertúlia), farto do rotativismo entre regeneradores e progressistas, voltara os olhos para a Alemanha do autoritário Otto von Bismarck. Como afirma Amadeu Carvalho Homem, a filosofia de mando do chanceler germânico «retirava espaço ao parlamentarismo e cometia ao governo centralizado a satisfação das mais prementes carências sociais». O grande historiador, tal como o brilhante orador parlamentar António Cândido e o influente director do jornal «O Tempo», Carlos Lobo de Ávila, com os olhos postos em Berlim, pretenderam, entre 1885 e 1887, «reconduzir o Partido Progressista a uma resgatadora ‘Vida Nova’». Falhado o alvo, reencontram-se entre os «Vencidos da Vida» (Nova?). No Tavares e no Hotel Bragança os três ex-«Vida Nova» pareciam de acordo com os oito restantes convivas: o constitucionalismo monárquico encontrava-se esgotado, tornava-se cada vez mais urgente uma governação «musculada» para pôr termo a um parlamentarismo que demonstrara à exaustão a sua incapacidade de pôr em prática as reformas de que Portugal desde há muito carecia.

Não admira, pois, que Oliveira Martins proclamasse que «os políticos se recrutam entre (…) advogados sem causas, escritores ‘manqués’, professores sem amor aos livros, médicos sem clínica, engenheiros sem colocação…». O ataque à classe política é frontal, chegando a afirmar: «Não há nas democracias homem menos respeitado, nem mais influente, do que o político. Essa influência não é prestígio; é apenas a consequência dos empregos que pode distribuir e dos negócios que pode contratar.» Quanto ao jornal «O Tempo», também não poupa o Parlamento: «O que menos se faz em S. Bento é trabalhar! Declama-se muito, intriga-se bastante, pedincha-se o mais que se pode, e nisso se resume principalmente a faina dos eleitos do povo. A politiquice sonorosa toma o lugar das discussões úteis e práticas, e ao cabo de dois ou três meses de palavreado estéril é que se forjam, à lufa-lufa, em meia dúzia de sessões, algumas leis indispensáveis.» (…) «A verdade é que está servindo para tudo menos para aquilo a que ele é destinado. No exame e verificação do orçamento do Estado, na discussão e elaboração das leis que mais de perto afectam a administração e a economia pública, a fiscalização parlamentar é quase uma ficção.» (…) «O parlamentarismo do palavreado estéril há-de matar o verdadeiro parlamentarismo.»

Como se vê, nem os Onze se limitavam a digerir jantares, nem Oliveira Martins os baptizara inocentemente como «Vencidos», nem a «Vida Nova» teve pouco a ver com os repastos do Bragança. As coisas nem sempre foram como Fialho as descrevia…

«Os Vencidos da Vida», Fronteira do Caos Editores, 2006, 222 páginas