Sobre o «animal de óculos» (Italo Svevo)

António Rego Chaves

Nascido em 1861 em Trieste, então território austro-húngaro, Italo Svevo viria a falecer na mesma cidade em 1928, quando esta já se encontrava, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, integrada na Itália. Em tal encruzilhada económica, política, estratégica, linguística e literária surgiria em 1923 «A Consciência de Zeno», sob o patrocínio de James Joyce, seu professor de inglês e admirador, Eugenio Montale e Valéry Larbaud. Apesar de antes ter feito editar «Uma Vida» (1892) e «Senilidade» (1898), o romancista era até essa altura praticamente desconhecido no seu país, só a partir de então se afirmando em toda a Europa como um grande escritor.

De seu nome Ettore Schmitz, escolhe o pseudónimo que o tornaria célebre reivindicando simultaneamente uma identidade cultural italiana (Italo) e alemã (Svevo, suábio, ou seja, da Suábia). Utiliza a língua «inventada» por Dante mas fora educado na Baviera, e é apoiando-se em concepções a que não são estranhos um Schopenhauer, um Nietzsche ou um Freud que constrói as suas ficções, tocadas pelo mal-estar de viver numa sociedade impregnada das convenções, das hipocrisias e dos poderes económicos instituídos e geridos pela sacrossanta família patriarcal. Explica Claudio Magris, também ele triestino: «Numa óptica tipicamente burguesa, a família surge na sua obra como um concentrado do universo, um labirinto de nós e de paixões, mortal e fecundo, como essas artérias que pulsam e se tornam escleróticas: como a vida, doença sveviana da matéria.»

Era o autor um pessimista? Aos seus leitores o cuidado de decidir. Apenas se pretende que tal pergunta é pertinente: quanto à resposta, que cada um decida se e quando pessimismo é realismo, ou realismo é pessimismo. Seja como for, parece haver na consciência de Svevo um lugar para a utopia…

Quem é Zeno? Um «doente», um «neurótico» a quem o psicanalista «trata» mandando-o escrever a autobiografia. Dirá o «paciente»: «O médico crê demasiado nessas bem-aventuradas confissões. Mas, Santo Deus, não tendo estudado senão medicina, ignora o esforço de escrever em italiano para nós que falamos dialecto (mas não o sabemos escrever). Uma confissão escrita é sempre falsa, e nós [triestinos] mentimos a cada palavra toscana. Conta-se de preferência o que é fácil exprimir, põe-se de lado tal facto com a preguiça de recorrer ao dicionário.» Vamos, pois, assistir a um desfilar de verdades e meias verdades – e dele dependerá a «cura» do «doente».

O «enfermo», porém, é arguto. Escolherá um e outro facto da infância e da adolescência, deter-se-á aqui e ali na sua vida sexual e familiar ou nas actividades profissionais que desempenhou, ligadas ao comércio e à Bolsa. Mas sabe que está a jogar um jogo em que não tem de se enfrentar apenas a si próprio, pois há que ter cautela com o psicanalista e com a sua «ciência» que, aliás, não ignora ser bem menos exacta do que a química que estudou. Dirá, mesmo: «No começo das sessões, tem-se a impressão de entrar numa floresta onde não se sabe se toparemos um amigo ou um salteador. Terminada a aventura, continuamos na ignorância. Isto faz com que a psicanálise se pareça com o espiritismo.» Por isso, talvez se possa dizer que Zeno nunca confia no «Doutor S.» (Doutor Sigmund, tal como Sigmund Freud?). Certo, certo, é que abandonará o esculápio que tudo quer descobrir acerca da sua intimidade: e, ao abandoná-lo, sentir-se-á liberto de remorsos, fantasmas e pesadelos. Poder-se-ia concluir que Zeno é um homem «normal»? Fica claro que sim, embora mais inteligente do que a maioria dos indivíduos estatisticamente «normais». Mas é também um homem «normal» – para o psicanalista «S.» – na medida em que, tal como Édipo, desejara «possuir» a mãe e quisera matar o pai. Ao mesmo tempo que faz esta caricatura da psicanálise, Svevo descreve um «caso» muito «normal», o de alguém que não admite encontrar-se doente e que, por isso, recusa a introspecção e o recurso a um clínico que o ajude a entender por que razão é egoísta, ou hipocondríaco, ou vive obcecado pela velhice e pela morte.

O bisturi do escritor triestino não se limita a dissecar o «doente» Zeno. Mergulha na «Mitteleuropa» dos inícios do século XX, põe a nu alguns dos seus vícios mais característicos, leva-nos a acreditar que, se existem muitos indivíduos «doentes», é sobretudo porque há sociedades que excluem e esmagam os «fracos» ou «desajeitados» ou «ineptos» que não aceitam submeter pensamentos, palavras e actos à lei da oferta e da procura. Vale dizer, que não se adaptam ao que é uso chamar «a ordem estabelecida».

A «solução» que Zeno encontra para o mal-estar da sua consciência, já depois de iniciada a Primeira Guerra Mundial, é, no mínimo, grotesca. Eis a sua nova obsessão: «Até ao começo do mês de Agosto de 1915, eu só soubera olhar, estupefacto e inerte, o mundo perturbado. Então comecei a comprar. Sublinho a palavra [comprar], por não ter o mesmo sentido que antes da guerra. Outrora, quando um comerciante falava em comprar queria dizer que estava disposto a adquirir determinada mercadoria. Hoje [26 de Março de 1916], ser comprador é ser, em regra, adquirente de qualquer mercadoria apresentada à venda. Como todos os seres fortes [sem aspas], só tinha uma ideia em vista: vivi para ela e ela fez a minha riqueza.»

De Zeno ao seu criador vai a distância que separa a criatura do demiurgo. A personagem interioriza o antifeminismo de Otto Weininger, enquanto o autor fotografa, na «sua» sociedade triestina, inúmeras práticas da bestial e refinada tradição machista. «A Consciência de Zeno» transforma-se, assim, em espelho de certo tempo e de certo espaço – quando não é, também, espelho de muitos outros tempos e de muitos outros espaços povoados pelo bizarro «animal de óculos» cuja origem foi detectada por Charles Darwin.

Italo Svevo, «A Consciência de Zeno», Dom Quixote, 2009, 434 páginas