Hannah Arendt, hoje

António Rego Chaves

Trinta anos depois da sua morte, o mensário «Le Magazine Littéraire» dedica o «dossier» de Setembro à filósofa judia alemã Hannah Arendt (1906-1975). Aluna de Husserl, Heidegger e Jaspers, sob a direcção do qual elaborou a tese de doutoramento («O Conceito de Amor em Santo Agostinho»), abandonou a Alemanha nazi em 1933, emigrando para França e, em 1941, para os EUA, tornando-se dez anos depois cidadã norte-americana. «As Origens do Totalitarismo» (1951) e «Eichmann em Jerusalém – Um Relatório sobre a Banalidade do Mal» (1963) continuam a ser os seus livros mais citados e discutidos, embora nenhum deles tenha atingido a elevada craveira intelectual de «A Vida do Espírito», obra póstuma de «filosofia pura» cujo primeiro volume coloca Arendt entre os grandes nomes do pensamento ocidental do século XX e que, na sua intensa luminosidade, talvez só pudéssemos colocar a par dos mais inspirados textos assinados por Simone Weil, Martin Heidegger ou María Zambrano.

O controverso conceito de «totalitarismo» domina as atenções da maioria dos colaboradores convidados por «Le Magazine Littéraire» – e há algumas boas razões para tal, pois ainda hoje este termo provoca um indisfarçável mal-estar entre todos aqueles que se recusam a «meter no mesmo saco» nazismo e estalinismo. Mas também a questão do judaísmo da autora de «Eichmann em Jerusalém» suscita polémica, pois, como faz notar o historiador Maurice Kriegel, Hannah Arendt, marcada pelo sionismo, critica a burguesia judaica assimilacionista do século XIX e do início do século XX, censurando-lhe simultaneamente a indignidade do comportamento e a total ausência de inteligência política; mais tarde, porém, acusará o sionismo de idênticas faltas de coragem e de lucidez, pois este teria definido «uma estratégia de esquiva e de evasão, preferindo fugir do anti-semitismo em vez de o combater, lá onde ela teria desejado uma aliança entre o sionismo bem compreendido e os seus potenciais irmãos de armas entre todos os oprimidos». Se recordarmos que, quando repórter em Jerusalém, afirmou ter posto de lado as suas ideias para se cingir ao rigor dos factos, classificando o processo de Eichmann como um lamentável «show trial» montado pelo então primeiro-ministro israelita Ben-Gurion, «banalizando o mal» ao descrever o acusado como um obediente e medíocre carreirista embrutecido, incapaz de conceber os sofrimentos por que se havia tornado responsável, e denunciando o colaboracionismo dos «conselhos judaicos» (Judenräte) criados pelos nazis, não estranharemos esta sua implacável conclusão: «Para um judeu, o papel que desempenharam os dirigentes judaicos na destruição do seu próprio povo é, sem qualquer espécie de dúvida, o mais sombrio capítulo de toda esta sombria história.»

No que se refere ao «totalitarismo», pergunta Hannah Arendt: «Que se passou? Porque é que se passou? Como é que foi possível?» O «totalitarismo» supõe, em primeiro lugar, uma ideologia que explica toda a história e justifica o regime e as suas políticas, designando um povo superior e um inimigo interno que convém eliminar (judeus na Alemanha de Hitler, ex-proprietários dos meios de produção e seus «aliados objectivos» na URSS de Estaline). Em segundo lugar, institucionaliza o terror total (campos de internamento e de extermínio nazis, campos de trabalho soviéticos). Terceiro, impulsiona a destruição dos espaços privados e dos laços humanos naturais – essencialmente os familiares. Depois, é o governo da burocracia, dominada pela polícia secreta (Gestapo, KGB). Finalmente, ao afirmar uma soberania absoluta, ter-se-ia visto conduzido a um «imperialismo continental».

Raymond Aron, insuspeito de qualquer simpatia pela URSS, introduziu alguma serenidade no estudo do «totalitarismo», afirmando que «seria injusto julgar o conjunto do regime soviético e a sua obra pelo fenómeno do terror policial» e repudiando a ideia de um «parentesco» essencial entre comunismo e nacional-socialismo, grata a Hannah Arendt. Descrevendo o «fenómeno totalitário», afirmou serem cinco os seus principais elementos: monopólio da actividade política por um partido único, transformação da ideologia deste em verdade oficial do Estado, monopólio dos meios de força e dos media, submissão ao Poder da maior parte das actividades económicas e profissionais, terror policial e ideológico. Pondo em relevo que a ideologia comunista é «universal e humanitária», ao passo que a nazi é «nacionalista, racista e tudo menos humanitária», admitiu, no entanto, que os meios utilizados por ambas para alcançar fins rigorosamente opostos poderiam ter sido semelhantes. Eis as palavras do grande sociólogo francês, em «Democracia e Totalitarismo» (1965): «Passando da história à ideologia, afirmarei, em última análise, que entre estes dois fenómenos a diferença é essencial, sejam quais forem as semelhanças. (…) «Num caso, actua uma vontade de construir um regime novo e talvez, também, um novo homem, seja por que meios for; no outro caso, actua uma vontade verdadeiramente demoníaca de destruição de uma pseudo-raça.» Em suma, não se pode confundir as purgas estalinistas com o genocídio dos judeus, sob pena de se estabelecer um amálgama insustentável entre o racionalmente explicável, ainda que intolerável, e o inteligível apenas como produto de um imprevisível comportamento demencial. Na opinião de Nicolas Baverez, autor de «Raymond Aron, um Moralista no Tempo das Ideologias», Arendt não estudou o «totalitarismo» de um ponto de vista histórico e sociológico – ao contrário do que fizera com o anti-semitismo e o imperialismo. Daí que o conceito que elaborou, forjado em plena «guerra-fria» para o combate político, não mereça hoje, segundo muitos especialistas, um estatuto científico. Assim sendo, o seu mais importante legado não será decerto a teorização do «totalitarismo», mas talvez a antropologia filosófica de «A Condição Humana» e, sem sombra de dúvida, a deslumbrante magia de «A Vida do Espírito»...

«Le Magazine Littéraire», «Hannah Arendt – Penser le monde d’aujourd’hui», Setembro de 2005, 98 páginas