Um repórter português em Paris (Guilherme de Azevedo)

António Rego Chaves

Escreveu Eça que «Portugal é um país traduzido do francês em calão». Como se sabe, o «francesismo» da Geração de 70 é indiscutível – talvez exceptuando os casos de Antero e Oliveira Martins –, e o próprio se tomou como alvo da sua ironia: «Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo um francês – excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau de cebolada.»

O poeta «revolucionário» da «Alma Nova», teatrólogo e jornalista Guilherme de Azevedo (1840-1882) foi um dos «afrancesados» responsáveis pelas célebres Conferências do Casino (1871), associando o seu nome aos de Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Seromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queiroz, Germano Vieira de Meireles, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sáragga e Teófilo Braga. Mais tarde, em 1879, seria autor, juntamente com Guerra Junqueiro, da irreverente peça de teatro «Viagem à Roda da Parvónia», proibida pelas autoridades logo após a primeira e única representação. No entanto, o seu vincado europeísmo não o impediu de aplaudir sem reservas, em 1880, as comemorações do 3.º centenário da morte de Camões, «essa manifestação inspirada por um sentimento cívico que é a afirmação da consciência nacional».

As «Crónicas de Paris» (1880-1882) enviadas por Guilherme de Azevedo para a «Gazeta de Notícias» do Rio de Janeiro, jornal que o convidara para seu correspondente na capital francesa, podem e devem ser lidas ainda hoje por todos os que pretendam conhecer uma visão portuguesa da capital que sucessivas gerações dos nossos intelectuais consideravam «o umbigo do mundo». Enriquecido por introdução, notas e posfácio de António Dias Miguel, o livro transporta-nos para a vida diurna e nocturna da grande cidade, dando-nos conta de acontecimentos políticos, sociais e culturais dos inícios da III República, sob o olhar arguto deste «prosador extraordinário, mas sarcástico, desdenhoso e acerbo» (Teófilo Braga). Ao grande caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, o seu melhor amigo, confidenciará: «É simples percorrer Paris pela manhã, e sobretudo é curiosíssimo surpreendê-la ao acordar.» (…) «Quando acorda não se lhe vêem olheiras. Mas à tarde e sobretudo à noite Paris já não é a mesma coisa. O “boulevard” esmaga; os cristais e os vermelhos de que os franceses abusam para alucinar o mundo, desnorteiam-nos. A vida para o provinciano de Lisboa passa a ser uma alucinação.» Talvez não suspeite, então, de que lhe resta apenas um ano e meio de existência. Fosse como fosse, trabalhará intensamente durante todo esse tempo, numa sede de conhecer e de dar conta do que viu e ouviu aos inúmeros leitores que esperam as suas palavras não só na já citada «Gazeta de Notícias» como nos jornais portugueses «O Primeiro de Janeiro» e «Diário da Manhã». Consagrará muitas das suas crónicas ao teatro, ao qual se encontrava especialmente ligado como autor, tradutor e crítico e publicará uma pormenorizada reportagem da grandiosa homenagem a Victor Hugo, por ocasião do 80.º aniversário do escritor, que fará desfilar perante a casa do ilustre ancião centenas de milhares de parisienses, entre os quais os franco-mações, as sociedades de ginastas, «grupos de chefes de família, com as mulheres pelo braço» e membros da Sociedade dos Amigos do Divórcio. Frequentará as «Folies-Bergère», o Café de la Paix, o «quartier» Bréda, acorrerá às exposições de pintura, assistirá a óperas e concertos, deliciar-se-á com a gastronomia francesa, ousando mesmo aventurar-se Chez Bignon, onde gastará 50 francos num jantar em que saboreará uma sopa, salmão, um «chateaubriand», doce, fruta e uma garrafa de Bordeaux. Escolherá para residir a verdadeira alma da cidade, o Boulevard Saint-Michel, a Rue Cujas, o Boulevard Saint-Germain. Ocupar-se-á da política francesa e internacional, aprenderá a «flanar» pelos «boulevards», frequentará os jardins do Luxemburgo, das Tulherias, da Aclimação, irá às feiras de Saint-Cloud e do «pain d’épice», apreciará os quadros expostos no Salon, não perderá as corridas de cavalos de Longchamp, deslumbrar-se-á como os festejos do 14 de Julho, sentir-se-á no «primeiro laboratório de ideias que possui a raça latina». «Familiarizei-me com esta Babilónia como se ela fosse o Martinho. Paris tem isto de grande: está a gente aqui como em sua casa: à vontade, sem que ninguém nos pergunte de onde vem ou para onde vai» – escreve a Bordalo Pinheiro. Quando este o visita no seu «habitat» de eleição, em 1882, recebe-o com esta saudação arrepiante: «Você vem assistir ao meu funeral». Assim foi.

Guerra Junqueiro revelará a chave da vida do cronista: «O jornalismo para Guilherme de Azevedo não foi uma devoção, foi uma imposição. A necessidade imbecil, o destino feroz, condenou-o, ai dele!, à prosa pública para toda a vida. Disso morreu. Matou-o aquela imensa melancolia donde rebentaram aquelas imensas gargalhadas. O seu riso foi a expectoração do seu desprezo.»

Que o leitor se deixe conduzir, guiado pelo nosso grande repórter, ao incidente que opôs Sarah Bernhardt ao embaixador alemão em Paris, à lúcida apreciação da condição da mulher europeia na época, à incoerência de Zola ao colaborar no jornal reaccionário «Le Figaro», às exéquias do compositor Offenbach ou do revolucionário socialista Auguste Blanqui, ao luxo dos Campos Elísios e à miséria da «cité parisienne» da rua de Puebla, aos decretos contra as congregações religiosas, à celebração do Dia de Finados em Montmartre e no Père-Lachaise, ao retrato da anarquista Louise Michel, ao perfil do primeiro-ministro e «ditador de persuasão» Léon Gambetta, às figuras do «cristão positivista» Renan e do pregador dominicano Monsabré, à Exposição da Electricidade, aos «réveillons», aos odores inebriantes das ceias dos ricos e ao cheiro a pólvora a que recorrem por vezes os famintos. O jornalista observa as duas faces da moeda, cumprindo a sua missão de relatar tudo o que vê, ora encantado, ora indignado. Que ninguém se atreva a pedir-lhe mais…nem menos.

Guilherme de Azevedo, «Crónicas de Paris» (1880-1882), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, 300 páginas