Joseph de Maistre, hoje («Considerações sobre a França»)

António Rego Chaves

Será Joseph de Maistre ainda actual? Segundo Rita Sacadura Fonseca, que o traduz e introduz nesta edição, a resposta é «sim». E porquê? Porque recusa a Modernidade. Porque influenciou Auguste Comte, Charles Baudelaire, Donoso Cortés, Charles Maurras e Carl Schmitt. Porque «defende a ideia de ordem, que vai marcar profundamente a sociologia de Comte». E foi lido e aprovado por «Cortés, que propôs o retorno a um poder secular e supra-nacional do Papado, Maurras que defendeu o monarquismo terrorista, e Schmitt, apologista do nazismo». Quanto ao poeta, deixemo-lo aqui descansar em paz: pertencia a um outro mundo.

Para o autor destas «Considerações sobre a França», «o regime ideal seria uma monarquia com as características feudais, que incluía a ideia de um Estado de direito, pois o Rei estava limitado pelas tradicionais leis fundamentais do Reino, bem como pelos esclarecimentos da Igreja em relação às máximas de governação que deveria adoptar e os pareceres avisados dos seus conselheiros». Afirmava, aliás, que «não pode existir uma grande nação livre sob um governo republicano». Anote-se que Joseph de Maistre nasceu em 1753 e escreveu esta obra já depois da Revolução Francesa, em 1797. Seria então «actual»? Será «actual» no século XXI?

Recusa do Iluminismo e da Revolução Francesa, defesa do cepticismo perante o progresso, pessimismo quanto à chamada «natureza humana», crença nas limitações da racionalidade, será tudo isto «actual»? Talvez sim e talvez não. Faltam-nos sondagens de opinião pública para responder com segurança. Mas, na medida em que tudo pode e deve ser submetido à lâmina da crítica, ainda que a saibamos por vezes movida pelo interesse próprio ou pela má-fé – cremos que sim. E, na medida em que a crítica pode apelar para o regresso a um passado onde imperou uma violência secular institucionalizada mas nunca evocada ou invocada, seja como explicação, seja como justificação da violência revolucionária – sem dúvida que não.

Joseph de Maistre, ao escrever este seu panfleto contra a Revolução Francesa, responde a Benjamin Constant, que em 1796 dera à estampa um panfleto de sinal contrário, com o título «De la force du gouvernement actuel de la France et de la nécessité de s’y rallier», onde se apelava para a adesão de todos os cidadãos «a um governo que vos oferece a paz e a liberdade e que não pode desabar sem vos enterrar nas suas ruínas». E, por outro lado, quer preparar, a muito breve prazo, a restauração monárquica.

Nascido no Ducado de Sabóia, católico educado sob a influência dos jesuítas, jurista, senador, favorável a um conservadorismo teocrata, tornar-se-á, logo em 1789, num feroz inimigo da Revolução. A abolição dos direitos feudais, o termo da servidão da gleba, o início da expropriação dos bens da Igreja, o fim dos privilégios senhoriais e dos direitos especiais de vilas e cidades feriram-no no mais arreigado das suas concepções políticas. Será a partir de então um activo e incansável inimigo dos ideais igualitários veiculados pelas brilhantes Luzes dos enciclopedistas. Dirá: «A geração presente é testemunha de um dos maiores espectáculos que jamais ocupou a vista humana: a luta de morte entre o cristianismo e o filosofismo.»

Residindo em Lausana até Fevereiro de 1797, convive com franceses fugidos à Revolução, realistas e ultramontanos, e começa a escrever textos de propaganda monárquica. Aí redige as quatro «Lettres d’un royaliste Savoisien», um «Étude sur la souverainité» e estas «Considerações sobre a França». Bem representativo do seu pensamento reaccionário é o seguinte exercício de retórica, onde surge claramente vincada a preocupação de recusar a universalidade do conceito de direitos do homem: «A Constituição de 1795, como as suas antecedentes, é feita para o homem. Ora, não existem homens no mundo. Já vi, na minha vida, Franceses, Italianos, Russos, etc.; sei mesmo, graças a Montesquieu, que se pode ser Persa; mas, quanto ao homem, declaro nunca o ter encontrado na minha vida; se existe, não tenho conhecimento.» Salta à vista a má-fé de quem se quer recusar a aceitar a igualdade de direitos e de oportunidades entre todos os seus semelhantes, mantendo os privilégios da casta em que se integra.

O que de facto o autor pretende impor é a ideia segundo a qual a liberdade não existe enquanto valor absoluto, pois cada povo tem características específicas determinando que esteja mais bem ou menos bem preparado para a democracia. Ouviu-se durante tempo de mais em Portugal este reles discurso, no século passado, quer no que se refere à «metrópole», quer no que diz respeito ao «ultramar», para que o possamos hoje ler sem repulsa.

Não se detém Maistre numa interpretação política dos acontecimentos históricos. A sua visão, pretende-a sobrenatural: chega a afirmar que «há na Revolução Francesa um carácter satânico que a distingue de tudo o que já se viu e talvez de tudo o que se verá». Lutero, Calvino e o Iluminismo teriam subvertido a moralidade cristã, por ameaçarem o trono e o altar. À França estariam destinadas as tarefas de combater o ateísmo veiculado pelas Luzes e de restabelecer a unidade religiosa em torno de Roma. A vontade divina teria exigido a vitória da Revolução como prefácio da restauração da monarquia e da religião cristã; assim como o Rei unificaria a sociedade política, ao Papa caberia a reunificação de toda a cristandade.

Há, no entanto, algum cinismo – que Charles Maurras habilmente recuperará – quando salienta: «Estas reflexões destinam-se a toda a gente, tanto ao crente quanto ao céptico: o que avanço é um facto, não uma tese. Que se riam das ideias religiosas ou que as venerem, tanto faz: verdadeiras ou falsas, elas formam a base única de todas as instituições duráveis.»

Actual no século XXI, Joseph de Maistre? Que Deus nos valha!

Joseph de Maistre, «Considerações sobre a França», Almedina, 2010, 309 páginas