António Cândido Franco (Pascoaes, o surrealismo e Pessoa)

Batalhas de letras

António Rego Chaves

Dissertar sobre poesia sob a égide de Ares, um deus tão competitivo quanto belicoso, nada tem de original: quem se aproxima da literatura sabe bem que ódios de estimação, mesmo a mortos, ela pode ocultar, sob o manto do panegírico de grandes escritores. Eis o que nos ocorre salientar ao lermos este ensaio de António Cândido Franco, cujos título e subtítulos vale a pena transcrever na íntegra: «Teixeira de Pascoaes nas palavras do surrealismo em português. Pascoaes, Cesariny, Cruzeiro Seixas, os surrealistas do anti-grupo, o Café Gelo, & outros saudosistas ou surrealistas do surreal (ou não). Subsídio ou pleito rememorativo & (talvez) historiográfico para uma conclusão geral do poético no século XX português.» Recobremos fôlego.

O autor visa alto: nada mais, nada menos, do que Fernando Pessoa. Para isso exalça Pascoaes, a quem se chama «o vate do Marão», «o Lautréamont português», «o Zaratustra do Marão»; e, como se de juízo final se tratasse, cita uma frase de Mário Cesariny inseparável do contexto da procura de filiação legítima para o surrealismo em português: «Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa.»

Disse o poeta do inesquecível «Louvor e simplificação de Álvaro de Campos» (e também, ó da guarda, do «Louvor e desratização de Álvaro de Campos», anote-se de passagem): «O seu [de Teixeira de Pascoaes] livro ‘O Bailado’, impresso em 1921 e não mais reeditado, pude eu já defini-lo como ‘rimbaldiano sem Rimbaud e surrealista sem o surrealismo’, tal o encontro interior com as teses de Breton.» Cândido Franco segue por um atalho convergente: «O surrealismo que se falou e fala em Portugal foi para Teixeira de Pascoaes nada menos que o formidável reagente que arrancou da invisibilidade as letras esquecidas (e até aí irrisórias) da sua poesia, sem distinção de verso ou de prosa. Estão aquelas assim para o surrealismo em português como as de Lautréamont estão para os de língua gaulesa.»

Sempre sob a égide de Ares, continua o ensaísta: José Régio, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Jacinto do Prado Coelho, Óscar Lopes, Manuel Antunes, não souberam ler «o grande Pascoaes», pois leram-no, releram-no e tresleram-no «como um autor que decorre da poesia finissecular oitocentista, em particular do neogarrettismo de António Nobre e do dito neo-romantismo de ‘Os Simples’ de Guerra Junqueiro». Repudia, deste modo, o que afirma ter sido «a rábula de um Pascoaes anti-moderno».

António Pedro, fundador do primeiro grupo surrealista português, pronunciou-se, no entanto, e em termos lapidares, sobre aquele a quem António Cândido Franco chama «o xamã do Tâmega»: «O pouco que conheci de Teixeira de Pascoaes levou-me à convicção de que nunca poderia lê-lo com acordo ou desrespeito.» Destaque-se: «nunca com acordo». O distanciamento seria, pois, insuperável. Aliás, no mesmo lugar, o número dedicado a Teixeira de Pascoaes, em 1953, pelos «Cadernos de Poesia», José-Augusto França não era menos peremptório: «Sei-me inteiramente alheio ao pensamento e à fonte de inspiração poética de Teixeira de Pascoaes. Nada tenho que ver com o ‘saudosismo’. O homem-universal, entendendo embora a grandeza do de Pascoaes, desenho-o eu com outra cor, com outro sangue, com outro olhar; o amor, vejo-o com outra violência, com outra esperança mítica.» Diga-se, também, que a homenagem prestada ao poeta foi, na ocasião, muito significativa, tanto pelas presenças quanto pelas ausências: Adolfo Casais Monteiro, Afonso Duarte, António de Navarro, António Sérgio, Augusto Saraiva, Delfim Santos, Eduardo Lourenço, Eudoro Sousa, Eugénio de Andrade, Jacinto do Prado Coelho, Joaquim de Carvalho, José Marinho, José Régio, Miguel Torga, Oscar Lopes, Sophia de Mello Breyner Andresen, Tomaz Kim, Jorge de Sena e José Blanc de Portugal participaram; Almada Negreiros, Guilherme de Castilho e Salgado Júnior escusaram-se; João Gaspar Simões e Sant’Ana Dionísio não deram resposta ao convite que lhes foi dirigido; José Gomes Ferreira teve falta justificada «por motivo de força maior».

A mais estrondosa das teses de António Cândido Franco veiculadas por esta obra é decerto a seguinte: «Aquilo que porventura alguns surrealistas portugueses, em primeiríssimo lugar Mário Cesariny, compreenderam melhor que outros ou que todos foi que Teixeira de Pascoaes sobreviveu física e espiritualmente a Fernando Pessoa perto de vinte anos e que parte da obra pascoaesiana criada nesse período de nudez e isolamento, que abriu com o «São Paulo» (1934) e fechou com «Últimos Versos» (1953) e «Minha Cartilha» (1954), foi pós-pessoana, no sentido em que supera tudo o que o poeta dos heterónimos conheceu e deu a conhecer.»

Osvaldo Manuel Silvestre, num estudo que intitulou «Pai tardio ou de como Cesariny inventou Pascoaes», terá posto um ponto final neste caso de averiguação da paternidade, ao provar que: «1) num primeiro momento, os surrealistas decidem, mas sem excessiva convicção, por Gomes Leal, que todavia não suporta tamanha responsabilidade; 2) entretanto, Cesariny tinha já decidido por Pessoa-[Álvaro de]Campos, que 3) a partir de meados da década de 50 irá ser acompanhado por um Pascoaes ainda não tão interpelante quanto Pessoa; 4) a certa altura do processo, a parelha Pascoaes/Pessoa ganha uma coloração agonística, na medida em que um e outro são entendidos como respostas diversas, e mesmo contraditórias, às questões do sujeito e da poesia; 5) a pendência resolve-se, já nos anos 70, em favor de Pascoaes; 6) regressado ao início, Cesariny decide matar Pessoa no findar dos anos 80, num recontro a dois, já que Pascoaes entretanto fora decretado o pai solitário do surrealismo português.»

Seja como for, associando aos heterónimos o «Livro do Desassossego», será necessário demonstrar por que razões, para a poesia e para a prosa portuguesas, o século XX foi o século de Pessoa – e não o de Pascoaes?

António Cândido Franco, «Teixeira de Pascoaes nas palavras do surrealismo em português», Licorne, Outono de MMX, 87 páginas