Histórias de Torquemadas (Edgar Morin)

António Rego Chaves

A obra do sociólogo francês Edgar Morin (uns cinquenta volumes) é sem dúvida notável pela grande variedade dos temas que tem abordado, mas nem sempre prima pela profundidade, talvez porque tem publicado quase um livro por ano nos últimos decénios. Os três textos reunidos em «Cultura e Barbárie Europeias» («Barbárie Humana e Barbárie Europeia», «Os Antídotos Culturais Europeus» e «Pensar a Barbárie do Século XX») pecam, pois, por alguma superficialidade, nomeadamente quando se refere ao colonialismo e à Inquisição em Portugal e Espanha, quando utiliza o controverso conceito de «totalitarismo» ou quando critica o estalinismo.

Existem, no entanto, neste livro, ideias que Edgar Morin explora com inegável brilho: por exemplo, o seu conceito de «racionalização», isto é, de «uma visão demasiado lógica que apenas retém o que a confirma», como por exemplo a do grande matemático e astrónomo Laplace, que «injecta a racionalização no centro da ciência», operando «uma racionalização extrema da racionalidade newtoniana». Acrescenta o autor: «Existe uma racionalização crítica que evita as ciladas da racionalização, uma racionalidade autocrítica que associa razão, conhecimento e exame de si mesmo. As doenças da razão não dependem da própria racionalidade, mas da sua perversão em racionalização e da sua quase deificação. Por exemplo, a instrumentalização da razão posta ao serviço de fins completamente irracionais e bárbaros, como a guerra, provém de um outro tipo de racionalização. Na realidade, o que é necessário ver por detrás de todas as racionalizações é, para além da ausência de pensamento crítico e autocrítico, o esquecimento daquilo a que Rousseau chama o esquecimento da nossa própria natureza. Presente em Rousseau, a natureza foi, apesar de tudo, ignorada pelas Luzes. Tudo isso vai mudar com o Romantismo.»

Quanto à barbárie política e religiosa, Edgar Morin, depois de recordar que tanto na Grécia como na Roma antigas o politeísmo permitiu a coexistência entre diferentes deuses, incitando à tolerância, escreve: «O monoteísmo judeu, depois cristão, trouxe, ao mesmo tempo que o seu universalismo potencial, a sua própria intolerância, eu diria até uma barbárie própria, assente no monopólio da verdade da sua revelação.» (…) «Enquanto o judaísmo tinha a possibilidade de permanecer no seu próprio interior, na aliança privilegiada que acreditava ter com Deus, o cristianismo procurou, por fim, destruir os outros deuses e as outras religiões. Aliás, a partir do momento em que foi reconhecido como a única religião de Estado, provocou o encerramento da Escola de Atenas e pôs assim fim a qualquer filosofia autónoma.» (…) «Por fim, o cristianismo triunfante suscitou no seu seio diversas correntes de pensamento, variadas interpretações da sua mensagem de origem. Em vez de as tolerar, reagiu pela elaboração de uma ortodoxia impiedosa, denunciando os desvios como heresias, perseguindo-os e destruindo-os com ódio, mesmo em nome da religião do Amor.»

Espanha e Portugal ocuparam, neste quadro, durante vários séculos, um papel tristemente relevante, quer devido ao colonialismo, quer no que se refere à «Santa Inquisição». Entre «purificação» religiosa e «purificação» etno-religiosa se moveram os dois países da Península Ibérica, fosse na Europa ou nos continentes africano, americano e asiático. Mas o mais curioso é que, como nos faz lembrar o autor, «a Europa ocidental, centro da maior dominação que alguma vez existiu no mundo», foi de facto «o único centro das ideias emancipadoras que vão minar esta dominação». (…) «É portanto na Europa, centro de dominação e conquista, que se formam os antídotos que são as ideias emancipadoras.» Por outro lado, com as viagens portuguesas e espanholas à volta do Globo, surge o que Edgar Morin chama «era planetária». E acentua: «Se este processo é inseparável da servidão e da escravatura, os germes da descolonização e da anti-servidão estão presentes desde o início. Ao lado da mundialização do comércio de traficantes e mercadores, desenvolveu-se uma mundialização das ideias de emancipação que culmina com a abolição da escravatura.» Barbárie e civilização, civilização e barbárie, eis, em suma, duas inseparáveis «irmãs».

Na opinião do ensaísta, «o fracasso da ideia socialista, fraternal e humanista, é mais ou menos análogo ao fracasso espiritual do cristianismo que, ao instituir-se, desfigurou a mensagem original de Cristo». Acentuando que os discípulos do nazareno e seus descendentes realizaram a construção de uma Igreja hierarquizada, organizada e potencialmente «totalitária», conclui: «O insucesso da mensagem redentora de Jesus provocou o triunfo da Igreja Católica. Podemos dizer que, do mesmo modo, o insucesso cultural do socialismo na União Soviética provocou a instauração do socialismo real e o espectacular desenvolvimento da sua força sob a férula de Estaline.» Digamos que, tratando de forma igualmente intransigente a «burocracia» católica e a «burocracia» estalinista, Edgar Morin alcança uma distância em relação a ambas que só pode levá-lo a melhor as explicar – o que está longe de querer dizer que as justificaria.

Não o podemos acompanhar quando nos «ensina» que o nazismo e o estalinismo são essencialmente consequências da Primeira Guerra Mundial e que, juntos, foram «os co-produtores da Segunda Guerra Mundial». Se é certo que Edgar Morin se assumiu, em tempos, como militante comunista, não é menos certo que a sua evolução ideológica determina, por vezes, algum incontrolado ressentimento em relação aos seus antigos ideais. Na verdade, não nos parece lícito presumir que, devido à «barbárie» pela qual se tornou responsável a Igreja Católica, na Europa e fora dela, com a Inquisição e o colonialismo, alguém deixe de ser cristão. Da mesma forma, não basta o estalinismo para afastar seja quem for do marxismo. A questão é outra, tem a ver com fé e instituição, num caso, teoria e prática, no outro. O resto são histórias de Torquemadas, qualquer que seja a sua cor política.

Edgar Morin, «Cultura e Barbárie Europeias», Instituto Piaget, 2007, 75 páginas